Por que devemos falar sobre mapas públicos
Plataforma OpenStreetMap visibiliza o que o Google esconde. Comunidades como as de quilombolas são convidadas a produzir seus próprios mapas. Territórios da Ásia e África reaparecem. Quais seus dilemas e potências?
Publicado 29/09/2020 às 13:57 - Atualizado 29/09/2020 às 14:30
Ao redor do mundo o papel do repositório OpenStreetMap, o maior “concorrente” do Google Maps no império das plataformas de cartografia, vem sendo cada vez mais debatido e defendido por lados opostos.
A liberdade do código, a solidariedade da rede de pessoas e o propósito do público (este ideal da democracia), conjuntamente, realizam há 16 anos a organização OpenStreetMap Foundation. Mas para que servem essas plataformas de mapas públicos?
A democracia em regimes político-econômicos diferentes, como a China, os EUA e o Brasil, atravessa o desafio de amparar-se em um “mapa público”, por uma Geopolítica que sirva antes de tudo para promover a paz e a justiça pelos dados abertos e o conhecimento livre na forma de um mapa online que assume um consenso mundo, um “mapa público mundial”.
As lógicas das plataformas de cartografia
Dois conjuntos de problemáticas norteiam hoje as soluções em plataformas: as questões do editor e as questões do usuário.
Por exemplo, fazer alterações ou incrementações no Google Maps depende de uma condição privada, enquanto no OpenStreetMap essa é uma condição sine qua non para ser uma plataforma pública de produção de mapas com base em imagens de satélites de diversas empresas espaciais.
Nem toda informação que nós (usuários) acessamos gratuitamente é uma “informação pública”, tampouco podemos dizer ser uma “informação livre” no sentido da reprodução e reposição. Em termos de acesso sim, tudo que é público e livre é também gratuito, mas o contrário não pode ser afirmado.
Mas quem paga o preço de um produto gratuito de origem proprietária e com fins lucrativos? A resposta mais elementar é: nossos dados pessoais de usuários e as publicidades das organizações financiadoras dedicados e dedicadas ao Google Maps e OpenStreetMap. Essa lógica capitalista, mais ou menos monopolista, operacionaliza as plataformas e não podemos fugir disso no sistema político-econômico vigente.
Conforme reportagem da BBC, de 2017, os satélites de empresas na nova fase da “corrida espacial”, com aparelhos mais compactos e novos players do mercado, como Planet Labs, Rocket Lab e SpaceX, servem como base para a plataforma OpenStreetMap, o que permite que o projeto alavanque mapeamentos ao redor do mundo e ameace o oligopólio da Google Inc. no território de outras potências do capital financeiro, como a Alemanha.
Desde 2004, voluntários do projeto OpenStreetMap, hackers e makers, realizam problematizações midiáticas e ações sociais nas escalas local, regional e nacional. Bancos de imagens de satélite cooperam com o projeto, como Bing, MapBox, Maxar, Esri e o IBGE no caso do Brasil.
Ou seja, empresas e governos pelo mundo entenderam que era importante para Geopolítica concorrer com o monopólio do big data de mapas da Google Inc. e só havia um caminho: a associação mundial via licenças open source.
No ramo dos dados abertos do OpenStreetMap, os mapas são um dos setores mais progressistas servindo de base para desenvolvimento desde games à inteligência artificial. Para os países periféricos (da África, da Ásia e da América Latina) essas imagens de satélite e mapas online produzidos pela Europa e pelos EUA, majoritariamente, contém em si 1) o paradigma, 2) o paradoxo e 3) as possibilidades de uma outra globalização.
Adiante três casos que representam essa “tríade conceitual” de modo aplicado na prática, casos que exemplificam o poder dos mapas públicos para uma mundialização da cartografia a partir dos saberes locais.
Paradigma do mapa público
O paradigma entre ser de um lugar e estar em um lugar acompanha a espécie humana desde os primeiros nômades. As memórias sobre uma paisagem, do habitante e do visitante, são distintas. Isso, na visão do autor francês Alain Bourdin em seu livro A questão local (1999), passa por um princípio de “pertença”.
Portanto a presença do mapeador ou do usuário do mapa envolve sempre o risco e o potencial do território. Para isso é preciso perguntarmos: Quem precisa de um mapa? Quando precisa de um mapa? Porque precisa de um mapa? São portanto dois pares de conceitos decisivos para interpretarmos um mapeamento: a presença e a pertença, o risco e o potencial dos lugares.
A comunidade HOT (Humanitarian OpenStreetMap Team) tem atuado com destaque na África em ações de mapeamento que são orientados pelas demandas locais. Assim é possível que o habitante e o visitante cooperem pela organização e não disputam pela desorganização política de um território. Este é um exemplo de boas práticas envolvendo geotecnologias para a inovação social em espaços públicos e de escala local-regional.
Paradoxo no mapa público
Hoje a China possui seu sistema de posicionamento global: o Beidou-2. Lançado oficialmente em 23 junho de 2020, dois meses depois, em 27 agosto de 2020, umareportagem do BuzzFeedna região oeste da China, realizada por jornalistas norte-americanos, chamou atenção para o fato de não haverem mapas tampouco imagens de satélite na área de instalações presidiárias e de internamento ocultadas pelo Beidou Maps – a plataforma que funciona como Google Maps na China – reveladas pelo satélite da empresa Planet Labs.
Essa situação evoca questões para o avanço no Brasil na relação de paradoxo entre a autoridade do governo e a autonomia da sociedade, o paradoxo dos usos às regulações que levam a afirmar que o mapa público ideal não deve estar submetido ao IBGE ou à sociedade anônima via Internet ou a uma empresa como a Google Inc. e suas terceirizadas.
É necessário criarmos no Brasil um projeto nacional de desenvolvimento de infraestruturas de dados espaciais públicos alinhando o OpenStreetMap com as perspectivas diversas, da sociedade (em suas diversas organizações), do governo (em suas três esferas) e das empresas de inovação (dedicadas às geotecnologias de informação e comunicação).
Possibilidade pelo mapa público
Por fim, ilustramos as possibilidades de um mapa público com o caso da população quilombola da Resina, na zona do Baixo-São Francisco, na região Nordeste do Brasil, especificamente no município de Brejo Grande, no estado de Sergipe.
Nessa periferia do mundo, irreconhecível para o Google Maps, o cotidiano ribeirinho mostra-se autônomo e sincrônico com a Natureza, mas, ainda assim, corre riscos pela força do capital e seus modos diacrônicos de lucrar com a terra e a água.
O ato político de mapear a própria comunidade com OpenStreetMap foi uma das soluções agregadas em 2019 ao projeto de soberania pela comunicação por parte da Associação Quilombo Vivo que, desde de 2003, vem buscando o reconhecimento do território junto o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O caso do “contraste cartográfico”, comprovado nos mapas da Resina, demonstra o quanto povos que compartilham desse mesmo capítulo da História (remanescentes de africanos aquilombados na América Latina) buscam nos seus mapeamentos uma afirmação simbólica, um empoderamento material, um projeto de imaginário que se diferencia da invisibilidade imposta pelo Google Maps a diversas comunidades e seus cotidianos.
Milton Santos, no ano um do século XXI, lançou sua última obra. O geógrafo do terceiro mundo deixou uma pista: é preciso e possível fazermos “uma outra globalização” das mídias e com os mapas não é diferente. No processo de corrida info-espacial a verdade sobre a paisagem do planeta se constrói.
publicado com autorização expressa do autor.
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