Uma proposta atual: a ecologia social de Murray Bookchin

em quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

 

 

Uma proposta atual: a ecologia social de Murray Bookchin

 


Selva Varengo

selva.varengo@gmail.com

 

 

Nos últimos anos, vem crescendo a consciência da crise ecológica que vivemos. A questão do clima é agora uma questão na agenda de muitos movimentos e até o capitalismo está tentando se reajustar sem perder seus ganhos em formas atraentes de economia verde (green economy). Mas tudo isso não vai resolver o problema porque vivemos em um sistema econômico capitalista baseado na exploração, no crescimento infinito, na busca contínua do lucro, no domínio da natureza e de outras espécies ... Pensar em poder resolver a crise ecológica global por meio de reformas parciais do sistema ou mudanças comportamentais individuais é, pelo menos, ingênuo.

Nos últimos meses então, com a explosão do covid-19 e o forte impacto do lockdown em nossas vidas, fechar os olhos para a gravidade da situação se torna cada vez mais difícil. Na verdade, as pandemias estão intimamente ligadas à questão ecológica: os coronavírus são doenças zoonóticas que são transmitidas de animais para pessoas. Surtos virais surgem da interseção entre a sociedade humana e a vida selvagem: a invasão e destruição de habitats naturais, a alteração do ecossistema, levam à disseminação de novos vírus e propagação, o agora tristemente famoso salto de espécie.

Sem afrontar as raízes desses problemas - ou seja, sem erradicar o capitalismo e a ideia de dominar a natureza - a situação só vai piorar. Por este motivo, as reflexões da ecologia social estão definitivamente de volta aos dias de hoje, oferecendo uma visão alternativa de como um mundo ecológica e socialmente justo poderia ser - um mundo organizado em torno do cuidado ao invés da dominação, favorecendo uma re-harmonização da humanidade e da natureza não humana.

A ecologia social, em contínuo desenvolvimento, surge das análises de Murray Bookchin (1921-2006), um dos pioneiros do movimento ecológico, cujo pensamento influenciou, entre outras coisas, recentemente o processo revolucionário na região curda de Rojava.

A atenção de Bookchin às questões ecológicas desenvolveu-se a partir de 1952, quando começou a denunciar o risco de uma grave catástrofe ecológica considerada potencialmente capaz de colocar em risco não apenas a vida dos seres humanos, mas também a existência do próprio planeta. Essa preocupação permanece presente, mais ou menos explicitamente, em todos os seus inúmeros escritos[1], constituindo uma base constante para a sua reflexão ecológica e política, e ao mesmo tempo servindo como um estímulo para a elaboração contínua de uma ecologia que ele define social.

A originalidade de seu pensamento pode ser identificada justamente por ter trazido a crise ecológica de volta às suas raízes sociais, afirmando assim a necessidade de uma transformação social radical que substitua a atual sociedade capitalista por uma sociedade diferente. Para Bookchin, a crise ecológica deriva da economia capitalista, mas, de maneira mais geral, as verdadeiras raízes da exploração ambiental estão nas hierarquias sociais.

Em particular, a causa da crise ecológica é identificada na ruptura do equilíbrio entre os seres humanos e a natureza provocada, em sua opinião, pelo surgimento do que ele chama de lógica da dominação. Segundo o autor, a exploração ambiental e o domínio da natureza nem sempre existiram, mas são fruto histórico de certas relações sociais e têm origem nas hierarquias sociais, que surgiram pela primeira vez com o desenvolvimento da família patriarcal e alcançaram seu ápice na sociedade capitalista moderna.

Bookchin argumenta que povos de todas as épocas projetaram suas estruturas sociais sobre o mundo natural e, consequentemente, também na atual sociedade, caracterizada pelo domínio do ser humano sobre seu semelhante, corresponde uma visão precisa da natureza. Visto que é concebida como oposta à sociedade, deve ser domesticada e conquistada para que o progresso da humanidade seja alcançado. O contraste entre sociedade e natureza, considerado o mais necessário para o desenvolvimento humano, tem levado, segundo Bookchin, o ser humano a esquecer que formam parte da evolução natural e que podem nela desempenhar um papel fértil e importante; tudo isso deu origem ao dualismo tradicional da cultura ocidental ao abrir um vazio profundo, muitas vezes intransponível, entre o mundo social e o mundo natural - e, da mesma forma, entre mente e corpo, sujeito e objeto - e também forneceu uma justificativa fundamental para a dominação.

O restabelecimento do equilíbrio entre os seres humano e a natureza, necessário à sobrevivência da humanidade, deve necessariamente passar por uma mudança nas relações sociais que leve à eliminação da hierarquia e da dominação. Ao focar nos aspectos sociais da crise ecológica atual, a ecologia social se distingue da ecologia "humana" e "profunda": em particular, o termo social deseja sublinhar o fato de que não podemos mais separar sociedade da natureza, assim como não podemos separar a mente do corpo.

Para compreender plenamente o significado de ecologia social, é útil lembrar a distinção semântica, proposta por Bookchin, entre ambientalismo e ecologia, dois termos frequentemente considerados intercambiáveis, mas na realidade os portadores de duas visões opostas da natureza. O primeiro termo - ambientalismo - designa uma forma bruta de engenharia ambiental, uma concepção mecanicista e instrumental que visa reduzir a natureza a um depósito de 'reservas naturais', a um habitat passivo ao serviço do ser humano; conceito que leva à adoção de uma política reformista de simples redução de danos, sem questionar a premissa básica da sociedade atual, ou seja, que o ser humano deve dominar a natureza e, portanto, as demais espécies. O ecologismo, por sua vez, trata do equilíbrio dinâmico da natureza, da interdependência dos seres vivos e, como a natureza também inclui os seres humanos, também questiona necessariamente o papel desempenhado pela humanidade no mundo natural, convertendo-se assim, não apenas em ecologia natural, também da ecologia social.

Particularmente acalorada são as críticas  que Bookchin dirige  à deep ecology, ou  ecologia profunda, fundada pelo filósofo norueguês Arne Næss. O principal erro dos adeptos desta última forma de ecologismo consiste, para Bookchin, em não compreender as origens sociais dos problemas ecológicos, limitando-se a insistir nos sintomas da crise e, consequentemente, considerar toda a humanidade como culpada do desastre ecológico, sem operar nenhuma distinção de responsabilidade. Reivindicar a culpa de todos os seres humanos na pilhagem da natureza traz inevitavelmente a ecologia profunda para adotar uma visão misantrópica, às vezes beirando o ecofascismo.

Em relação à ecologia profunda, Bookchin também enfatiza a diferente  visão das relações entre os seres humanos e o mundo natural: enquanto a ecologia profunda adota uma perspectiva biocêntrica segundo a qual todos os organismos vivos têm igual valor e importância, Bookchin rejeita claramente o biocentrismo ao que acusa de negar a especificidade do papel do ser humano na evolução natural. Isso não implica de forma alguma a adoção de uma perspectiva antropocêntrica por parte da ecologia social, mas sim a rejeição de qualquer tipo de centrismo, por ser considerado hierárquico e autoritário.

Bookchin, argumentando que as causas da crise ecológica são sociais, afirma fortemente a necessidade de uma transformação radical da sociedade por meio da construção do que ele chama de sociedade ecológica. Para ele, é necessário tomar consciência de que o sistema capitalista é incompatível com o restabelecimento de uma relação harmoniosa entre o ser humano e a natureza e, portanto, deve ser totalmente desmontado e substituído por relações totalmente diferentes.

Já que o domínio dos seres humanos sobre a natureza deriva, como dissemos, do domínio do humano sobre o humano, é claro que a nova sociedade esperada por Bookchin deve ser desprovida de qualquer forma de dominação, portanto, não hierárquica e sem classes. A eliminação da dominação, em todas as formas em que ocorre, vai garantir que a nova sociedade ecológica seja orientada em um sentido libertário.

Segundo Bookchin, para a criação de uma sociedade ecológica, além de uma profunda transformação social, são imprescindíveis as transformações culturais e pessoais que levem ao desenvolvimento de novas sensibilidades e novas formas de pensar, capazes de interpretar as diferenças não numa lógica de dominação e de opressão, mas valorizando-os e considerando-os uma riqueza fundamental para a evolução natural e social. Esta nova sensibilidade não hierárquica só pode ser alcançada através de um longo processo educativo, tanto no sentido intelectual como ético, capaz de responsabilizar cada ser humano pelas suas ações e de exercer uma cidadania autêntica, para poder agir primeiro com consciência em primeira pessoa, autogestionado-se.

Sensibilidade, visão de mundo e estilo de vida, portanto, desempenham um papel muito importante para Bookchin no processo revolucionário que visa substituir a atual sociedade hierárquica pela nova sociedade ecológica, tanto que, em sua opinião, a revolucionária enquanto tentar mudar o mundo deve necessariamente mudar a si mesmo.

Paralelamente a tudo isso, espera-se o nascimento de uma política básica em que haja uma clara distinção entre poder de decisão e sua execução administrativa: enquanto o primeiro deve ser da competência exclusiva das assembleias populares, esta pode ser confiada a um órgão delegado administrativo, eleito com mandato revogável a qualquer tempo. A sociedade ecológica deve, portanto, ser caracterizada pela prática da democracia direta, baseada em assembleias populares com pleno poder de decisão. Tudo isso, é claro, implica a convicção da existência de uma comunidade e de uma competência individual, de forma que cada indivíduo seja capaz de tomar decisões a respeito da comunidade a que pertence e de ser um cidadão autônomo. Esse reconhecimento da competência individual e comunitária, de clara derivação anarquista, leva à criação de uma sociedade anti-hierárquica, onde o princípio da ação direta assume grande importância, instilando no indivíduo confiança em sua capacidade de autogestão.

 

A aplicação política da ecologia social é constituída pelo municipalismo libertário, ou comunitarismo, cujas origens são claramente identificadas por Bookchin na época das revoluções americana e francesa e na experiência significativa da Comuna de Paris de 1871.

Defende o desenvolvimento de municípios livres e descentralizados de pequeno porte, caracterizados pela democracia direta, cada um dos quais formado por um município de municípios menores, perfeitamente sintonizados com o ecossistema em que estão inseridos.

Bookchin também está convencido da necessidade de descentralizar a sociedade para permitir o surgimento de eco-comunidades bem integradas ao ecossistema do qual fazem parte. Ele tem consciência de como essa perspectiva descentralizada pode causar espanto no ser humano contemporâneo, acostumado a viver nas metrópoles, evocando uma imagem de isolamento cultural e estagnação social, de uma viagem de volta na história às sociedades medievais, mas é convencido de que o cidadão está realmente muito mais isolado e sozinho nas grandes cidades do que seus antepassados ​​estavam no campo. No entanto, é importante sublinhar que a descentralização, mais institucional do que territorial, constitui uma condição necessária, mas não suficiente, para a constituição de uma sociedade ecológica, uma vez que pode coexistir, como já aconteceu no passado, mesmo com instituições hierárquicas. Por isso, é importante que a descentralização seja acompanhada pela criação de uma sociedade verdadeiramente ecológica, baseada na prática da ação direta, apoio mútuo, autogestão, democracia direta, municipalismo libertário e sobretudo confederalismo.

Para Bookchin, a nova sociedade não pode ignorar nem mesmo uma mudança econômica radical: o sistema econômico capitalista atual deve de fato ser radicalmente transformado, pois não é compatível com a ética da comunidade. A questão não é escolher entre nacionalizar ou privatizar a economia, mas implementar uma municipalização da economia que implique o controle dos meios de produção e serviços por toda a comunidade: uma economia municipalizada e moral, caracterizada pelos princípios da reciprocidade, interdependência, cuidado e compromisso mútuo.

Para Bookchin, portanto, não se trata de iniciar um processo revolucionário de tipo insurrecional, mas de construir contra-instituições capazes de se opor cada vez mais ao poder do Estado.

O importante, em todo caso, é reafirmar aquele que é um elemento fundamental do pensamento anarquista: a necessidade de coerência entre meios e fins - não é por acaso, aliás, que a ecologia social também foi definida como eco-anarquismo. ou ecologismo anarquista.

 



1 Entre seus livros mais importantes traduzidos para o italiano, destaco M. Bookchin, L’ecologia della libertà, Milão, Elèuthera (1986), 2017, pp. 560. E meu livro de síntese de seu pensamento: Selva Varengo: La rivoluzione ecologica. Il pensiero libertario di Murray Bookchin, Milano, Zero in condotta, 2020, nuova edizione, pp. 240.

 

Tradução de paulo celso da Silva com expressa autorização da autora.

Original disponível em:

Una proposta attuale: l’ecologia sociale di Murray Bookchin

https://www.matrika.co/una-proposta-attuale-lecologia-sociale-di-murray-bookchin/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Entre seus livros mais importantes traduzidos para o italiano, destaco M. Bookchin, L’ecologia della libertà, Milano, Elèuthera (1986), 2017, pp. 560. E meu livro de síntese de seu pensamento: S. Varengo, La rivoluzione ecologica. Il pensiero libertario di Murray Bookchin, Milano, Zero in condotta, 2020, nuova edizione, pp. 240.

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