Uma proposta atual: a ecologia social de Murray Bookchin
Selva Varengo
selva.varengo@gmail.com
Nos últimos anos, vem crescendo a
consciência da crise ecológica que vivemos. A questão do clima é agora uma questão
na agenda de muitos movimentos e até o capitalismo está tentando se reajustar
sem perder seus ganhos em formas atraentes de economia verde (green economy).
Mas tudo isso não vai resolver o problema porque vivemos em um sistema
econômico capitalista baseado na exploração, no crescimento infinito, na busca
contínua do lucro, no domínio da natureza e de outras espécies ... Pensar em
poder resolver a crise ecológica global por meio de reformas parciais do
sistema ou mudanças comportamentais individuais é, pelo menos, ingênuo.
Nos últimos meses então, com a
explosão do covid-19 e o forte impacto do lockdown em nossas vidas, fechar os
olhos para a gravidade da situação se torna cada vez mais difícil. Na verdade,
as pandemias estão intimamente ligadas à questão ecológica: os coronavírus são
doenças zoonóticas que são transmitidas de animais para pessoas. Surtos virais
surgem da interseção entre a sociedade humana e a vida selvagem: a invasão e
destruição de habitats naturais, a alteração do ecossistema, levam à
disseminação de novos vírus e propagação, o agora tristemente famoso salto de
espécie.
Sem afrontar as raízes desses problemas - ou seja, sem erradicar o capitalismo e a ideia de dominar a natureza - a situação só vai piorar. Por este motivo, as reflexões da ecologia social estão definitivamente de volta aos dias de hoje, oferecendo uma visão alternativa de como um mundo ecológica e socialmente justo poderia ser - um mundo organizado em torno do cuidado ao invés da dominação, favorecendo uma re-harmonização da humanidade e da natureza não humana.
A ecologia social, em contínuo
desenvolvimento, surge das análises de Murray Bookchin (1921-2006), um dos
pioneiros do movimento ecológico, cujo pensamento influenciou, entre outras
coisas, recentemente o processo revolucionário na região curda de Rojava.
A atenção de Bookchin às questões
ecológicas desenvolveu-se a partir de 1952, quando começou a denunciar o risco
de uma grave catástrofe ecológica considerada potencialmente capaz de colocar
em risco não apenas a vida dos seres humanos, mas também a existência do
próprio planeta. Essa preocupação permanece presente, mais ou menos explicitamente,
em todos os seus inúmeros escritos[1], constituindo
uma base constante para a sua reflexão ecológica e política, e ao mesmo tempo
servindo como um estímulo para a elaboração contínua de uma ecologia que ele
define social.
A originalidade de seu pensamento
pode ser identificada justamente por ter trazido a crise ecológica de volta às
suas raízes sociais, afirmando assim a necessidade de uma transformação social
radical que substitua a atual sociedade capitalista por uma sociedade
diferente. Para Bookchin, a crise ecológica deriva da economia capitalista,
mas, de maneira mais geral, as verdadeiras raízes da exploração ambiental estão
nas hierarquias sociais.
Em particular, a causa da crise
ecológica é identificada na ruptura do equilíbrio entre os seres humanos e a
natureza provocada, em sua opinião, pelo surgimento do que ele chama de lógica
da dominação. Segundo o autor, a exploração ambiental e o domínio da natureza
nem sempre existiram, mas são fruto histórico de certas relações sociais e têm
origem nas hierarquias sociais, que surgiram pela primeira vez com o
desenvolvimento da família patriarcal e alcançaram seu ápice na sociedade
capitalista moderna.
Bookchin argumenta que povos de
todas as épocas projetaram suas estruturas sociais sobre o mundo natural e,
consequentemente, também na atual sociedade, caracterizada pelo domínio do ser
humano sobre seu semelhante, corresponde uma visão precisa da natureza. Visto
que é concebida como oposta à sociedade, deve ser domesticada e conquistada
para que o progresso da humanidade seja alcançado. O contraste entre sociedade
e natureza, considerado o mais necessário para o desenvolvimento humano, tem
levado, segundo Bookchin, o ser humano a esquecer que formam parte da evolução
natural e que podem nela desempenhar um papel fértil e importante; tudo isso
deu origem ao dualismo tradicional da cultura ocidental ao abrir um vazio
profundo, muitas vezes intransponível, entre o mundo social e o mundo natural -
e, da mesma forma, entre mente e corpo, sujeito e objeto - e também forneceu
uma justificativa fundamental para a dominação.
O restabelecimento do equilíbrio
entre os seres humano e a natureza, necessário à sobrevivência da humanidade,
deve necessariamente passar por uma mudança nas relações sociais que leve à
eliminação da hierarquia e da dominação. Ao focar nos aspectos sociais da crise
ecológica atual, a ecologia social se distingue da ecologia "humana"
e "profunda": em particular, o termo social deseja sublinhar o fato
de que não podemos mais separar sociedade da natureza, assim como não podemos
separar a mente do corpo.
Para compreender plenamente o
significado de ecologia social, é útil lembrar a distinção semântica, proposta
por Bookchin, entre ambientalismo e ecologia, dois termos frequentemente considerados
intercambiáveis, mas na realidade os portadores de duas visões opostas da
natureza. O primeiro termo - ambientalismo - designa uma forma bruta de
engenharia ambiental, uma concepção mecanicista e instrumental que visa reduzir
a natureza a um depósito de 'reservas naturais', a um habitat passivo ao
serviço do ser humano; conceito que leva à adoção de uma política reformista de
simples redução de danos, sem questionar a premissa básica da sociedade atual,
ou seja, que o ser humano deve dominar a natureza e, portanto, as demais
espécies. O ecologismo, por sua vez, trata do equilíbrio dinâmico da natureza,
da interdependência dos seres vivos e, como a natureza também inclui os seres
humanos, também questiona necessariamente o papel desempenhado pela humanidade
no mundo natural, convertendo-se assim, não apenas em ecologia natural, também
da ecologia social.
Particularmente acalorada são as
críticas que Bookchin dirige à deep ecology, ou ecologia profunda, fundada pelo filósofo
norueguês Arne Næss. O principal erro dos adeptos desta última forma de
ecologismo consiste, para Bookchin, em não compreender as origens sociais dos
problemas ecológicos, limitando-se a insistir nos sintomas da crise e,
consequentemente, considerar toda a humanidade como culpada do desastre
ecológico, sem operar nenhuma distinção de responsabilidade. Reivindicar a
culpa de todos os seres humanos na pilhagem da natureza traz inevitavelmente a
ecologia profunda para adotar uma visão misantrópica, às vezes beirando o ecofascismo.
Em relação à ecologia profunda,
Bookchin também enfatiza a diferente visão das relações entre os seres humanos e o
mundo natural: enquanto a ecologia profunda adota uma perspectiva biocêntrica
segundo a qual todos os organismos vivos têm igual valor e importância,
Bookchin rejeita claramente o biocentrismo ao que acusa de negar a
especificidade do papel do ser humano na evolução natural. Isso não implica de
forma alguma a adoção de uma perspectiva antropocêntrica por parte da ecologia
social, mas sim a rejeição de qualquer tipo de centrismo, por ser considerado
hierárquico e autoritário.
Bookchin, argumentando que as
causas da crise ecológica são sociais, afirma fortemente a necessidade de uma
transformação radical da sociedade por meio da construção do que ele chama de
sociedade ecológica. Para ele, é necessário tomar consciência de que o sistema
capitalista é incompatível com o restabelecimento de uma relação harmoniosa
entre o ser humano e a natureza e, portanto, deve ser totalmente desmontado e
substituído por relações totalmente diferentes.
Já que o domínio dos seres
humanos sobre a natureza deriva, como dissemos, do domínio do humano sobre o
humano, é claro que a nova sociedade esperada por Bookchin deve ser desprovida
de qualquer forma de dominação, portanto, não hierárquica e sem classes. A
eliminação da dominação, em todas as formas em que ocorre, vai garantir que a
nova sociedade ecológica seja orientada em um sentido libertário.
Segundo Bookchin, para a criação
de uma sociedade ecológica, além de uma profunda transformação social, são
imprescindíveis as transformações culturais e pessoais que levem ao
desenvolvimento de novas sensibilidades e novas formas de pensar, capazes de
interpretar as diferenças não numa lógica de dominação e de opressão, mas
valorizando-os e considerando-os uma riqueza fundamental para a evolução
natural e social. Esta nova sensibilidade não hierárquica só pode ser alcançada
através de um longo processo educativo, tanto no sentido intelectual como
ético, capaz de responsabilizar cada ser humano pelas suas ações e de exercer
uma cidadania autêntica, para poder agir primeiro com consciência em primeira
pessoa, autogestionado-se.
Sensibilidade, visão de mundo e
estilo de vida, portanto, desempenham um papel muito importante para Bookchin
no processo revolucionário que visa substituir a atual sociedade hierárquica
pela nova sociedade ecológica, tanto que, em sua opinião, a revolucionária
enquanto tentar mudar o mundo deve necessariamente mudar a si mesmo.
Paralelamente a tudo isso,
espera-se o nascimento de uma política básica em que haja uma clara distinção
entre poder de decisão e sua execução administrativa: enquanto o primeiro deve
ser da competência exclusiva das assembleias populares, esta pode ser confiada
a um órgão delegado administrativo, eleito com mandato revogável a qualquer
tempo. A sociedade ecológica deve, portanto, ser caracterizada pela prática da
democracia direta, baseada em assembleias populares com pleno poder de decisão.
Tudo isso, é claro, implica a convicção da existência de uma comunidade e de
uma competência individual, de forma que cada indivíduo seja capaz de tomar
decisões a respeito da comunidade a que pertence e de ser um cidadão autônomo. Esse
reconhecimento da competência individual e comunitária, de clara derivação anarquista,
leva à criação de uma sociedade anti-hierárquica, onde o princípio da ação
direta assume grande importância, instilando no indivíduo confiança em sua
capacidade de autogestão.
A aplicação política da ecologia
social é constituída pelo municipalismo libertário, ou comunitarismo, cujas
origens são claramente identificadas por Bookchin na época das revoluções
americana e francesa e na experiência significativa da Comuna de Paris de 1871.
Defende o desenvolvimento de
municípios livres e descentralizados de pequeno porte, caracterizados pela
democracia direta, cada um dos quais formado por um município de municípios
menores, perfeitamente sintonizados com o ecossistema em que estão inseridos.
Bookchin também está convencido
da necessidade de descentralizar a sociedade para permitir o surgimento de
eco-comunidades bem integradas ao ecossistema do qual fazem parte. Ele tem
consciência de como essa perspectiva descentralizada pode causar espanto no ser
humano contemporâneo, acostumado a viver nas metrópoles, evocando uma imagem de
isolamento cultural e estagnação social, de uma viagem de volta na história às
sociedades medievais, mas é convencido de que o cidadão está realmente muito
mais isolado e sozinho nas grandes cidades do que seus antepassados estavam
no campo. No entanto, é importante sublinhar que a descentralização, mais
institucional do que territorial, constitui uma condição necessária, mas não
suficiente, para a constituição de uma sociedade ecológica, uma vez que pode
coexistir, como já aconteceu no passado, mesmo com instituições hierárquicas.
Por isso, é importante que a descentralização seja acompanhada pela criação de
uma sociedade verdadeiramente ecológica, baseada na prática da ação direta,
apoio mútuo, autogestão, democracia direta, municipalismo libertário e
sobretudo confederalismo.
Para Bookchin, a nova sociedade
não pode ignorar nem mesmo uma mudança econômica radical: o sistema econômico
capitalista atual deve de fato ser radicalmente transformado, pois não é
compatível com a ética da comunidade. A questão não é escolher entre
nacionalizar ou privatizar a economia, mas implementar uma municipalização da
economia que implique o controle dos meios de produção e serviços por toda a
comunidade: uma economia municipalizada e moral, caracterizada pelos princípios
da reciprocidade, interdependência, cuidado e compromisso mútuo.
Para Bookchin, portanto, não se
trata de iniciar um processo revolucionário de tipo insurrecional, mas de
construir contra-instituições capazes de se opor cada vez mais ao poder do
Estado.
O importante, em todo caso, é
reafirmar aquele que é um elemento fundamental do pensamento anarquista: a
necessidade de coerência entre meios e fins - não é por acaso, aliás, que a
ecologia social também foi definida como eco-anarquismo. ou ecologismo
anarquista.
1 Entre seus livros mais importantes
traduzidos para o italiano, destaco M. Bookchin, L’ecologia della libertà,
Milão, Elèuthera (1986), 2017, pp. 560. E meu livro de
síntese de seu pensamento: Selva Varengo: La rivoluzione ecologica. Il
pensiero libertario di Murray Bookchin, Milano, Zero in condotta, 2020,
nuova edizione, pp. 240.
Tradução de paulo celso da Silva
com expressa autorização da autora.
Original disponível em:
Una proposta attuale: l’ecologia sociale di Murray Bookchin
https://www.matrika.co/una-proposta-attuale-lecologia-sociale-di-murray-bookchin/
[1] Entre
seus livros mais importantes traduzidos para o italiano, destaco M. Bookchin,
L’ecologia della libertà, Milano, Elèuthera (1986), 2017, pp. 560. E meu livro de síntese de seu pensamento:
S. Varengo, La rivoluzione ecologica. Il pensiero libertario di Murray
Bookchin, Milano, Zero in condotta, 2020, nuova edizione, pp. 240.
incrivel o artigo, Grazie Mille, Selva Varengo!!
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