Foto: Getty Images
de
Tiziana Bertaccini
11
de junho de 2020
O
ponto culminante da pandemia chegou à América Latina, onde estima-se um milhão
e quatrocentos mil casos. Nos últimos dias, a OMS indicou a América do Sul como
o novo epicentro da epidemia, com o Brasil liderando o ranking.
O corona
vírus chegou à América Latina sacudida pelos protestos de 2019, em um contexto
democrático frágil, com tendência de queda por pelo menos quatro anos
consecutivos, caracterizado por instabilidade política recorrente e crise de
governança. No final da primeira década do século XXI, a região estava envolta
por uma visão otimista sobre o futuro da democracia, que registrava uma
melhoria tanto nas práticas eleitorais quanto na percepção da população,
mostrando uma cidadania substancialmente satisfeita. Ao observar mais
atentamente, começou a crescer um grupo de indiferentes à política e ao tipo de
regime, e que também estava abandonando
o apoio à democracia (Latinobarometro 2018).
Não
é um fato tão surpreendente se considerarmos que a modernização institucional,
que afeta a região há pelo menos vinte anos, não foi capaz de curar a
desconfiança crônica em relação às instituições, que é, por seu turno, a causa
e o efeito da falta de consolidação democrática, e nem a permanente brecha
entre Estado e sociedade. As reformas
políticas, eleitorais e constitucionais lançadas em ritmo acelerado perpetraram
as estruturas organizacionais do poder "afetadas" pelos vícios
antigos, sem erradicar a cultura política tradicional com suas inclinações
populistas e autoritárias, com a predisposição inata para superar a divisão de
poderes e a ausência de um Estado de direito efetivo. As novas formas de
autoritarismo que surgiram na região também são filhas da arquitetura
institucional da era democrática e, é claro, da política que as desenhou (T.
Bertaccini, Il tortuoso cammino verso il consolidamento democratico, Forum
Cespi L’America Latina: que pasa? www.Cespi.it).
Os
desafios nunca superados à desigualdade, o crescente descontentamento com a
política e a desconfiança crônica em relação às instituições explodiram nos
protestos de 2019. A pandemia se apresentou assim em um cenário regional
instável, exacerbando as brechas existentes e se insinuando nos vazios das
culturas democráticas latino-americanas.
Antes de tudo, como em qualquer outro lugar, o impacto na economia, que
na América Latina afeta no período considerado o menor crescimento das últimas
sete décadas (2014-20), segundo dados da CEPAL (Comissão Econômica para a
América Latina), em países já fortemente testado como a Argentina, em aberta recessão
ou em clara estagnação como o México. Na América Latina, a pandemia agrava a
relação estruturalmente patológica entre crescimento e desenvolvimento, na
região que permanece a mais desigual do mundo e onde, desde 2004, o relatório
do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) indicou como o
principal desafio das democracias a superação das desigualdades e da pobreza. A
maior contração do crescimento devido à pandemia, com uma queda esperada no PIB
de cerca de 5,3% (CEPAL), ocorre em um contexto já marcado por preocupantes
indicadores sobre o aumento da desigualdade e o tímido avanço do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH;
PNUD, Informe sobre el Desarrollo Humano 2019,www.hdr.undp.org.; La región ha
subestimado la desigualdad, 28 novembro 2019, www. Cepal.org). Assim, o Corona vírus se insinua
nas brechas nunca superadas, em uma região que detém o primado na diferença de
renda e na dualidade da economia formal / informal. Estima-se que a economia
subterrânea da região esteja entre 30% e 80%, dependendo do país. Para os
trabalhadores da economia informal que trabalham na economia de subsistência e
vivem dia-a-dia, ficar em casa e medidas
de isolamento significam perder o seu sustento. Como comentou o vigário de
Iquitos, capital de Loreto, uma das regiões mais afetadas do Peru: "Para a
maioria pessoas em Iquitos, a forma de vida é vender algo na porta da casa ou fazer
bicos [pequenos trabalhos] Como você diz para uma família de 12 pessoas em uma
casa de 10 metros quadrados, com um teto de fibrocimento, com calor, que não
saiam para evitar o contágio? » (El País, La informalidad y la fuga de los más
vulnerables hacia el campo desbaratan el confinamiento en Perú, 8 mayo,
www.elpais.com). E é
claro que isso não se aplica apenas ao Peru, hoje um dos países mais afetados
da América Latina, com cerca de 200.000 casos.
O
Covid-19 atinge fortemente setores tradicionalmente débeis: saúde, educação e
trabalho, precisamente aquele bem-estar (welfare) que tem sido alvo de tantos
protestos sociais nos últimos anos, com o risco de acentuar uma cidadania ainda
mais excludente. Segundo algumas estimativas da OCSE, os programas de
previdência e assistência social cobrem dois terços dos trabalhadores e suas
famílias (62%) e 65% dos trabalhadores informais não têm proteção social; 125
milhões de pessoas não têm acesso a serviços básicos de saúde e mais de 47% da
população não tem acesso à seguridade social. Sem esquecer que existem áreas,
principalmente rurais, onde falta água. Sistemas de saúde aos quais recursos
insuficientes foram alocados e que durante a pandemia foram desviados por
fundos em Estados altamente corruptos.
Diante
desse cenário delicado, agravado pelas medidas muitas vezes erráticas e
contraditórias dos governos, embora com a devida diferença entre os casos do
país, as crises político-institucionais se abriram, a instabilidade política
aumentou, os governantes usaram a crise para alterar o jogo democrático a seu
favor, reforçando o personalismo e contornando a divisão de poderes, notícias e
dados foram alterados ou ocultados, afetando a liberdade de informação,
enquanto cresceram o protagonismo militar, de organizações criminais e a
corrupção.
Alguns
governos negaram ou minimizaram a gravidade da ameaça, omitindo as
recomendações básicas de saúde. O Brasil está entre os países que adotaram uma
posição mais favorável à economia do que à saúde de seus cidadãos. As tensões
entre os poderes do Estado, que já haviam se manifestado durante o primeiro ano
do governo Bolsonaro, eclodiram diante das diferenças sobre como lidar com a
emergência. E as fissuras no governo começaram a se abrir. Primeiro de tudo,
atingindo o delicado setor de saúde. Em 16 de abril, Bolsonaro afastou o
Ministro da Saúde, favorável Às medidas de isolamento, para substituí-lo por um
homem mais parecido com suas posições. Um mês depois, em 15 de maio, o novo
ministro também renunciou por causa de divergências de opinião sobre medidas de
quarentena e uso de drogas antimaláricas (cloroquina), mas também por causa das
constantes violações de Bolsonaro às regras restritivas. O presidente continuou
descaradamente a gerar encontros entre seus seguidores sem cautela, difundindo
as fotos nas mídias sociais. Na confusão reinante na máquina estatal, o
Ministro da Saúde também reclamou que não havia sido consultado sobre a
abertura de atividades econômicas, uma decisão tomada com o Ministro da
Economia Paulo Guedes, um homem muito importante no governo por suas posições
hiperliberiais . No entanto, o próprio Guedes começou a perder poder no governo
quando o plano de recuperação econômica foi elaborado com o ministro da Casa
Civil, general Walter Souza Braga Netto. Juntamente com as incertezas criadas
na população, confusas em seguir as indicações do Presidente ou do Ministro da
Saúde, que prejudicam a confiança nas instituições, a crise interna se agrava a
cada dia.
As
tensões políticas atravessaram o pacto federal, abaladas por desacordos com os
governadores que decidiram tomar suas próprias medidas de quarentena, sem
faltar confrontos com o presidente, que acabou perdendo o apoio de alguns
executivos estaduais. Bolsonaro não teve escrúpulos em exacerbar um defeito
patológico do sistema político democrático: a difícil relação entre o Executivo
e um Congresso altamente fragmentado dentro dele, causando problemas de
governança, acusando o Presidente da Câmara de impedi-lo e de traçar um plano para destituí-lo, assim,
fomentando uma narrativa de conspiração com a invenção de inimigos
inexistentes, provavelmente úteis para manter a coesão no núcleo duro de sua
base eleitoral (El País, 20 de abril, www.elpaís.com).
O
presidente juntou-se repetidamente a protestos pró-golpistas que elogiaram uma
intervenção dos militares, emitindo declarações ambíguas como "não
queremos negociar nada" e apoiando seus partidários, a parte dos setores
sociais que, diante da insegurança gerada desde a emergência, manifestam
inclinações autoritárias, aumentando assim a polarização social. O conflito
entre poderes piorou ainda mais devido à participação do presidente em
manifestações públicas que ocorreram contra o Supremo Tribunal Federal e o
Congresso, um comportamento que também foi condenado por muitos governadores
por violar o artigo. 85 da Constituição que regulamenta os crimes de
responsabilidade do presidente, entre outros o do livre exercício das unidades
legislativas, judiciais e da federação.
O
caso brasileiro também revela outro espectro recorrente das democracias
latino-americanas: a corrupção, um aspecto estrutural e inerente da região, que
nos últimos vinte anos minou a estabilidade política em quase toda parte. Em
alguns casos, a pandemia também facilitou a disseminação de práticas corruptas relacionadas
à emergência de saúde. Os ataques ao Supremo Tribunal Federal estão
relacionados a investigações inconvenientes. Em um país onde há alguns anos o
judiciário alcança um alto grau de autonomia e independência, mas onde as
sombras do protagonismo do judiciário no juízo político contra Dilma Rousseff
não são completamente dissipadas. A frente judicial da crise
político-institucional explodiu com a renúncia do Super Ministro da Justiça
Sergio Moro (pessoa famosa pela operação Lava Jato e prisão do ex-Presidente
Lula), que ocorreu após a demissão do Diretor Geral da Polícia Federal Maurício
Valeixo, seu colaborador de confiança, é "culpado" por ter aberto uma
investigação sobre o filho do presidente, o senador Flavio Bolsonaro, suspeito
de desviar fundos públicos. A presença do juiz Moro no governo serviu para
fortalecer a credibilidade na promessa eleitoral de Bolsonaro de combater a
corrupção e o crime organizado. O verdadeiro poder do superministro, a quem a
mão livre havia sido assegurada, estava ameaçado há algum tempo, não apenas
pelos vetos de suas propostas no pacote anticrime aprovado em dezembro de 2019,
mas também pela ameaça de separar o Ministério da Justiça do da Segurança, limitando assim as faculdades de Moro. Vários
pedidos de impeachment foram arquivados no Congresso e o Supremo Tribunal
Federal autorizou investigações contra elementos-chave do grupo bolsonarista
para uma investigação relacionada à disseminação de notícias falsas contra
autoridades públicas, na qual estão envolvidos os dois filhos da presidente,
Carlos e Eduardo.
Enquanto
a crise política se aprofunda dia após dia com duras acusações entre os poderes
do Estado, corroendo a fraca confiança nas instituições, minando a divisão de
poderes, aumentando a polarização social e debilitando plenamente a
consolidação democrática, o Corona vírus continua imperturbável no próprio
caminho superando os 700.000 casos, colocando o Brasil em segundo lugar no
triste ranking mundial, depois dos Estados Unidos.
Tiziana Bertaccini
Ensina história latino-americana no Departamento de Cultura Política e Sociedade da Università di Torino.
Traduzido
por Paulo Celso da Silva com autorização expressa da autora.
originalmente
publicado em :
IL BRASILE TRA PANDEMIA E CRISI ISTITUZIONALE.
Parabéns pelas publicações!
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