BRASIL ENTRE PANDEMIA E CRISE INSTITUCIONAL

em quarta-feira, 17 de junho de 2020


Foto: Getty Images

de Tiziana Bertaccini
11 de junho de 2020

O ponto culminante da pandemia chegou à América Latina, onde estima-se um milhão e quatrocentos mil casos. Nos últimos dias, a OMS indicou a América do Sul como o novo epicentro da epidemia, com o Brasil liderando o ranking.

O corona vírus chegou à América Latina sacudida pelos protestos de 2019, em um contexto democrático frágil, com tendência de queda por pelo menos quatro anos consecutivos, caracterizado por instabilidade política recorrente e crise de governança. No final da primeira década do século XXI, a região estava envolta por uma visão otimista sobre o futuro da democracia, que registrava uma melhoria tanto nas práticas eleitorais quanto na percepção da população, mostrando uma cidadania substancialmente satisfeita. Ao observar mais atentamente, começou a crescer um grupo de indiferentes à política e ao tipo de regime, e  que também estava abandonando o apoio à democracia (Latinobarometro 2018).

Não é um fato tão surpreendente se considerarmos que a modernização institucional, que afeta a região há pelo menos vinte anos, não foi capaz de curar a desconfiança crônica em relação às instituições, que é, por seu turno, a causa e o efeito da falta de consolidação democrática, e nem a permanente brecha entre Estado e sociedade.  As reformas políticas, eleitorais e constitucionais lançadas em ritmo acelerado perpetraram as estruturas organizacionais do poder "afetadas" pelos vícios antigos, sem erradicar a cultura política tradicional com suas inclinações populistas e autoritárias, com a predisposição inata para superar a divisão de poderes e a ausência de um Estado de direito efetivo. As novas formas de autoritarismo que surgiram na região também são filhas da arquitetura institucional da era democrática e, é claro, da política que as desenhou (T. Bertaccini, Il tortuoso cammino verso il consolidamento democratico, Forum Cespi L’America Latina: que pasa? www.Cespi.it).

Os desafios nunca superados à desigualdade, o crescente descontentamento com a política e a desconfiança crônica em relação às instituições explodiram nos protestos de 2019. A pandemia se apresentou assim em um cenário regional instável, exacerbando as brechas existentes e se insinuando nos vazios das culturas democráticas latino-americanas.  Antes de tudo, como em qualquer outro lugar, o impacto na economia, que na América Latina afeta no período considerado o menor crescimento das últimas sete décadas (2014-20), segundo dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), em países já fortemente testado como a Argentina, em aberta recessão ou em clara estagnação como o México. Na América Latina, a pandemia agrava a relação estruturalmente patológica entre crescimento e desenvolvimento, na região que permanece a mais desigual do mundo e onde, desde 2004, o relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) indicou como o principal desafio das democracias a superação das desigualdades e da pobreza. A maior contração do crescimento devido à pandemia, com uma queda esperada no PIB de cerca de 5,3% (CEPAL), ocorre em um contexto já marcado por preocupantes indicadores sobre o aumento da desigualdade e o tímido avanço do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH; PNUD, Informe sobre el Desarrollo Humano 2019,www.hdr.undp.org.; La región ha subestimado la desigualdad, 28 novembro 2019, www. Cepal.org). Assim, o Corona vírus se insinua nas brechas nunca superadas, em uma região que detém o primado na diferença de renda e na dualidade da economia formal / informal. Estima-se que a economia subterrânea da região esteja entre 30% e 80%, dependendo do país. Para os trabalhadores da economia informal que trabalham na economia de subsistência e vivem  dia-a-dia, ficar em casa e medidas de isolamento significam perder o seu sustento. Como comentou o vigário de Iquitos, capital de Loreto, uma das regiões mais afetadas do Peru: "Para a maioria pessoas em Iquitos, a forma de vida é vender algo na porta da casa ou fazer bicos [pequenos trabalhos] Como você diz para uma família de 12 pessoas em uma casa de 10 metros quadrados, com um teto de fibrocimento, com calor, que não saiam para evitar o contágio? » (El País, La informalidad y la fuga de los más vulnerables hacia el campo desbaratan el confinamiento en Perú, 8 mayo, www.elpais.com). E é claro que isso não se aplica apenas ao Peru, hoje um dos países mais afetados da América Latina, com cerca de 200.000 casos.

O Covid-19 atinge fortemente setores tradicionalmente débeis: saúde, educação e trabalho, precisamente aquele bem-estar (welfare) que tem sido alvo de tantos protestos sociais nos últimos anos, com o risco de acentuar uma cidadania ainda mais excludente. Segundo algumas estimativas da OCSE, os programas de previdência e assistência social cobrem dois terços dos trabalhadores e suas famílias (62%) e 65% dos trabalhadores informais não têm proteção social; 125 milhões de pessoas não têm acesso a serviços básicos de saúde e mais de 47% da população não tem acesso à seguridade social. Sem esquecer que existem áreas, principalmente rurais, onde falta água. Sistemas de saúde aos quais recursos insuficientes foram alocados e que durante a pandemia foram desviados por fundos em Estados altamente corruptos.

Diante desse cenário delicado, agravado pelas medidas muitas vezes erráticas e contraditórias dos governos, embora com a devida diferença entre os casos do país, as crises político-institucionais se abriram, a instabilidade política aumentou, os governantes usaram a crise para alterar o jogo democrático a seu favor, reforçando o personalismo e contornando a divisão de poderes, notícias e dados foram alterados ou ocultados, afetando a liberdade de informação, enquanto cresceram  o protagonismo  militar, de organizações criminais e a corrupção.

Alguns governos negaram ou minimizaram a gravidade da ameaça, omitindo as recomendações básicas de saúde. O Brasil está entre os países que adotaram uma posição mais favorável à economia do que à saúde de seus cidadãos. As tensões entre os poderes do Estado, que já haviam se manifestado durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, eclodiram diante das diferenças sobre como lidar com a emergência. E as fissuras no governo começaram a se abrir. Primeiro de tudo, atingindo o delicado setor de saúde. Em 16 de abril, Bolsonaro afastou o Ministro da Saúde, favorável Às medidas de isolamento, para substituí-lo por um homem mais parecido com suas posições. Um mês depois, em 15 de maio, o novo ministro também renunciou por causa de divergências de opinião sobre medidas de quarentena e uso de drogas antimaláricas (cloroquina), mas também por causa das constantes violações de Bolsonaro às regras restritivas. O presidente continuou descaradamente a gerar encontros entre seus seguidores sem cautela, difundindo as fotos nas mídias sociais. Na confusão reinante na máquina estatal, o Ministro da Saúde também reclamou que não havia sido consultado sobre a abertura de atividades econômicas, uma decisão tomada com o Ministro da Economia Paulo Guedes, um homem muito importante no governo por suas posições hiperliberiais . No entanto, o próprio Guedes começou a perder poder no governo quando o plano de recuperação econômica foi elaborado com o ministro da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto. Juntamente com as incertezas criadas na população, confusas em seguir as indicações do Presidente ou do Ministro da Saúde, que prejudicam a confiança nas instituições, a crise interna se agrava a cada dia.

As tensões políticas atravessaram o pacto federal, abaladas por desacordos com os governadores que decidiram tomar suas próprias medidas de quarentena, sem faltar confrontos com o presidente, que acabou perdendo o apoio de alguns executivos estaduais. Bolsonaro não teve escrúpulos em exacerbar um defeito patológico do sistema político democrático: a difícil relação entre o Executivo e um Congresso altamente fragmentado dentro dele, causando problemas de governança, acusando o Presidente da Câmara de impedi-lo  e de traçar um plano para destituí-lo, assim, fomentando uma narrativa de conspiração com a invenção de inimigos inexistentes, provavelmente úteis para manter a coesão no núcleo duro de sua base eleitoral (El País, 20 de abril, www.elpaís.com).

O presidente juntou-se repetidamente a protestos pró-golpistas que elogiaram uma intervenção dos militares, emitindo declarações ambíguas como "não queremos negociar nada" e apoiando seus partidários, a parte dos setores sociais que, diante da insegurança gerada desde a emergência, manifestam inclinações autoritárias, aumentando assim a polarização social. O conflito entre poderes piorou ainda mais devido à participação do presidente em manifestações públicas que ocorreram contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, um comportamento que também foi condenado por muitos governadores por violar o artigo. 85 da Constituição que regulamenta os crimes de responsabilidade do presidente, entre outros o do livre exercício das unidades legislativas, judiciais e da federação.

O caso brasileiro também revela outro espectro recorrente das democracias latino-americanas: a corrupção, um aspecto estrutural e inerente da região, que nos últimos vinte anos minou a estabilidade política em quase toda parte. Em alguns casos, a pandemia também facilitou a disseminação de práticas corruptas relacionadas à emergência de saúde. Os ataques ao Supremo Tribunal Federal estão relacionados a investigações inconvenientes. Em um país onde há alguns anos o judiciário alcança um alto grau de autonomia e independência, mas onde as sombras do protagonismo do judiciário no juízo político contra Dilma Rousseff não são completamente dissipadas. A frente judicial da crise político-institucional explodiu com a renúncia do Super Ministro da Justiça Sergio Moro (pessoa famosa pela operação Lava Jato e prisão do ex-Presidente Lula), que ocorreu após a demissão do Diretor Geral da Polícia Federal Maurício Valeixo, seu colaborador de confiança, é "culpado" por ter aberto uma investigação sobre o filho do presidente, o senador Flavio Bolsonaro, suspeito de desviar fundos públicos. A presença do juiz Moro no governo serviu para fortalecer a credibilidade na promessa eleitoral de Bolsonaro de combater a corrupção e o crime organizado. O verdadeiro poder do superministro, a quem a mão livre havia sido assegurada, estava ameaçado há algum tempo, não apenas pelos vetos de suas propostas no pacote anticrime aprovado em dezembro de 2019, mas também pela ameaça de separar o Ministério da Justiça do da Segurança,  limitando assim as faculdades de Moro. Vários pedidos de impeachment foram arquivados no Congresso e o Supremo Tribunal Federal autorizou investigações contra elementos-chave do grupo bolsonarista para uma investigação relacionada à disseminação de notícias falsas contra autoridades públicas, na qual estão envolvidos os dois filhos da presidente, Carlos e Eduardo.

Enquanto a crise política se aprofunda dia após dia com duras acusações entre os poderes do Estado, corroendo a fraca confiança nas instituições, minando a divisão de poderes, aumentando a polarização social e debilitando plenamente a consolidação democrática, o Corona vírus continua imperturbável no próprio caminho superando os 700.000 casos, colocando o Brasil em segundo lugar no triste ranking mundial, depois dos Estados Unidos.


Tiziana Bertaccini
Ensina história latino-americana no Departamento de Cultura Política e Sociedade da Università di Torino.

Traduzido por Paulo Celso da Silva com autorização expressa da autora.
originalmente publicado em :
IL BRASILE TRA PANDEMIA E CRISI ISTITUZIONALE.

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