Tecnovirus: contágio da mídia - parte II

em domingo, 7 de junho de 2020

Ilustração: frame do filme O Labirinto do Fauno

Ricardo Viscardi
UdelaR

Tecnovirus: o acidente com a mídia

Quarentena: "tempo irreal"
A expressão "tempo real" designa a interface entre dois sistemas, naturais ou artificiais, que juntos produzem um efeito de acordo com a mesma escala de tempo [1]. Se você chatear com um interlocutor, mesmo que sejam pessoas do outro lado do mundo, a troca será realizada por meio cibernético, em uma sequência temporal (entre as máquinas), de acordo com a conversa cara a cara entre as partes. O uso do termo "tempo real" privilegia a referência cibernética, portanto, "tempo real" atribui condição "real" à interface que vincula, entre si,  a dois (ou mais) artefatos. Não estamos diante da realidade natural, mas da realidade artefatual, isto é, constituída pela inteligência humana.
Na medida em que promove vínculos midiáticos (por exemplo, mediante plataformas de conferência virtual), a conexão remota em "tempo real" configura a condição de possibilidade de uma paradoxal campanha de opinião universal, uma vez que visa alcançar por meio de artefatos, o maior isolamento possível (“distância social”, ou mais apropriadamente, “distância física”), como efeito do vínculo estabelecido à distância. Pode-se afirmar, tanto por derivação conceitual quanto terminológica, que a mídia promoveu um “tempo irreal” ao difundir, em “tempo real” na interface, a prescrição de privar ao corona vírus de todo contato público propenso a contágio.

Um “tempo irreal” de confinamento deve a existência, sobretudo  midiática, ao “tempo real” do relacionamento mediado por artefatos, pois essa mediação se tornou o agente mais eficaz para inibir a propagação do corona vírus. Para conter a circulação patogênica do vírus, foi utilizado o "tempo real" ativado, por sua vez, pelo parque tecnológico disponível.

Algumas concomitâncias estratégicas entre ciber-viralidade e viralidade biológica, a fim de limitar a disseminação mundial do Corona vírus, mostra uma forte ligação, tanto pública quanto cibernética, entre o uso saudável da mídia e a infecção causada pelo Corona vírus.

O acidente global 
Como efeito do "tempo real" da cibernética, a realidade natural da Modernidade entra em colapso, uma vítima necessariamente paradoxal de sua criatura: Frankestein. McLuhan apontou a catástrofe que poderia ser causada por um mundo governado por computadores, em que a conexão generalizada, possibilitada pela tecnologia, determinaria, com seu acidente, um colapso global [2]. Virilio [3] apresenta a mesma percepção de um acidente generalizado, pois as estratégias tecnológicas (militares, informativas, demográficas) implicam, em "tempo real", a possibilidade do "acidente dos acidentes", ou seja, o " acidente global ”. A natureza funcional da informação globalizada conduz à dissolução do sentido, diante do desaparecimento de qualquer destino que não seja a eficiência do próprio sistema (no canal de Shannon, tanto o remetente quanto o receptor são "caixas pretas", silenciadas por razões de cálculo computacional). Como Baudrillard disse, "o cristal se vinga".

A vingança ocorreu em Wuhan, o local de nascimento do Corona vírus, um local que foi estabelecido (em "tempo real") na origem da infecção. Desde então, esse local transcendeu um ciclo natural de reprodução viral de animal para humano (zoonose), de acordo com uma alternância cíclica do tipo evolução (biológica) / revolução (imunológica). Wuhan destaca em vermelho um hiperlink de "link", no qual ele "clica" num mundo de pessoas antes globalizadas: um "acidente global", tal como descrito por McLuhan e Virilio.

A mediação entra
Descrevendo a situação pela qual passou na infância, quando o exército alemão invadiu a França e particularmente sua cidade natal, Nantes, Virilio ressalta que não há resistência sem ocupação. Assim que o território francês foi ocupado pelo exército sob as ordens do governo nazista, os franceses desenvolveram resistência porque os seus próprios estavam contaminados pelo invasor [4]. Esta dialética entre ocupação e resistência é potencializada ad infinitum quando a interface cibernética vincula "em tempo real" cada um com outros tantos destinatários e destinadores online. Como McLuhan apontou, a fronteira se torna, neste caso, "ressonância" [5]. O fato de a fronteira se tornar ressonância ressoa, antes de tudo, na memória de nossa civilização, isto é, na metafísica, pois até recebe seu nome, de um limite entre a física e o que está além dela. Por essa razão, a metafísica pode ser abordada, como argumentou Silva García [6], como uma “questão de limites”. Essa questão dos limites também é a questão central do criticismo em Kant: não exceder os limites da razão, reconhecer os limites impostos pela experiência dos sentidos.

O que chamamos de "tempo real" é global porque é mundialmente ilimitado, mas também é ilimitante na medida em que a cada pessoa é dado desde sua própria perspectiva, especialmente quando esse horizonte é instalado a partir de um monitor doméstico. Uma certa proporção entre o ilimitado e o ilimitante corresponde, na proposta de Virilio, à análise do vínculo entre ocupação e resistência, que reflete o título de seu livro: "A administração do medo". Medo de ficar de fora do processo econômico mundial, medo de ser dominado pela insegurança, medo de um ataque informático, medo do Corona vírus. Mas também, medo paradoxalmente administrado por cada um, na comparação entre insegurança e justiça, tecnologia e transcendência, corona vírus e governamentalidade.

Se os gregos entenderam a questão de ser através de paradoxos, isto é, a discussão de opiniões contraditórias entre si e igualmente plausíveis, certamente a mesma discussão é ainda mais válida hoje, pois o questionamento da mídia tende a confundir o medo a crise (de segurança, economia, saúde, etc.) com a existência crítica (em pensamento) de cada um. Talvez esse paradoxo seja o do Corona vírus, no qual é pregada a unidade do Corpo Social, embora à distância, para conseguir que os anticorpos possam acabar com a doença em todos, devido ao acidente global que se espalhou pela mídia desde Wuhan.

[1] A busca não leva a informações acadêmicas específicas em "Tempo Real", enquanto a própria discussão online da Wikipédia não tem referências externas. Ver «Tiempo real”, Wikipedia. Recuperado de: https://es.wikipedia.org/wiki/Tiempo_real
[2]McLuhan, M. (1996). Comprender los medios de comunicación. Buenos Aires: Paidós,  p.347.
[3]Virilio, P. (1998). La bombe informatique. Paris: Galilée, p. 148.
[4]Virilio, P. (2010). L’administration de la peur. Paris: Textuel, pp. 15-16.
[5]McLuhan, M., Powers, B.R. (1993). La aldea global. Barcelona: Gedisa, p. 149.
[6 ]Ver a respeito Viscardi, R. “Mario Silva García: la universalidad de un pensador uruguayo”. Recuperado de: https://ricardoviscardi.blogspot.com/2012/01/mario-silva-garcia-la-universalidad-de.html

Tradução de Paulo Celso da Silva
Original disponível em:

Nenhum comentário:

Postar um comentário



Topo