O eco de um novo mundo
Opinião – Andreu Escrivà, divulgador ambiental
14/11/2025 - 11:11
A cheia de 2024 não foi apenas meteorologia: foi o choque entre um clima em aquecimento e um território que forçámos até ao limite.
Acumulação de carros destruídos pelas inundações provocadas pela DANA em Valência em outubro de 2024.
FOTO: SONIA BONET
Há cerca de um ano e pouco, algo humano e ao mesmo tempo telúrico se quebrou em Valência. No Mediterrâneo tínhamos vivido cheias e enxurradas, ravinas e leitos furiosos, tempestades com granizo e relâmpagos, chuvas torrenciais e depressões atmosféricas muito longas. “No meu país a chuva não sabe chover”, cantava Raimon, e não lhe faltava razão. A climatologia do nosso território não é nem amável nem educada. Mas a pergunta é: o que aconteceu no outono de 2024 é culpa de não termos levado a chuva à escola, como recitava o de Xàtiva, ou é algo diferente?
Em primeiro lugar, a chuva já não é aquela à qual Raimon cantava há mais de quarenta anos. Intuíamos isso, mas agora sabemos que a mudança climática desempenhou um papel determinante na severidade da DANA, aumentando as precipitações até 20%, segundo indicam estudos de atribuição muito recentes. Estas análises permitem saber se um fenómeno meteorológico extremo está ligado à mudança climática e, em caso afirmativo, em que medida o aquecimento do planeta o tornou mais provável ou mais grave. As chuvas de outubro de 2024 em Valência trazem, de forma indelével, a marca do aumento das temperaturas do planeta Terra. No entanto, esta questão não é, nem de longe, toda a história, nem explica por si só toda a tragédia.
Passaram‑se décadas desde a publicação das primeiras cartografias de zonas inundáveis, bem como da promulgação de legislação sobre as restrições de usos nestas zonas (entre eles, os construtivos). Contudo, durante este período, que abrange a bolha imobiliária do início do século, construiu‑se mais do que nunca nessas zonas. Aldeias e vilas que efetivamente nunca tinham sido inundadas passaram a ter a maior parte da sua população em áreas inundáveis, expostas a um perigo que desconheciam, apesar da obrigação legal de aviso por parte de quem lhes vendia os apartamentos.
Ninguém tinha consciência da possibilidade de uma tragédia como aquela, apesar de a vulnerabilidade ter aumentado de forma exponencial em apenas alguns anos. A teia de responsabilidades cruzadas é densa, e custa ver através dela. A regulamentação era manifestamente melhorável e, ainda assim, foi ignorada. As cheias históricas podiam ser consultadas na hemeroteca e até na memória dos mais velhos, e preferiu‑se esquecê‑las. O impulso de dominação da natureza, que se cristaliza em poucos assuntos como na canalização rígida e cimentada dos leitos de ravinas e rios, sistemas dinâmicos e cambiantes, tem sido uma das causas subjacentes e ao mesmo tempo diretas de tudo o que aconteceu.
Devolver espaço à natureza e assumir uma verdadeira cultura do risco já não é uma opção: é a condição imprescindível para evitar que as tragédias se voltem a repetir
Ao contrário do que acontece em países como Cuba ou o Japão, onde o risco está presente no quotidiano e também em diferentes etapas escolares, entre nós sabe‑se muito pouco sobre isso. Da mesma forma que negligenciamos os riscos sísmicos – tsunamis incluídos –, as inundações graves representam um acontecimento isolado na nossa mentalidade de gestores do território. Um incidente desafortunado, pensamos. E não: são sintoma de um país com uma violência hídrica como há bem poucos, onde a água, demasiadas vezes, não é nem amável nem alegre. Porque é que temos tão presentes os incêndios, que causam menos mortes, e nos relaxamos diante da água? Talvez seja pela falsa sensação de segurança que dá um território urbanizado, onde os cursos de água foram encaixotados e comprimidos até à asfixia, ou mesmo desfigurados no meio de um mar de casas, estradas e polígonos industriais.
Seria hora de começar a assumir tudo isso. Não só a cidadania, mas também aqueles que têm nas mãos as decisões que podem salvar ou condenar centenas ou milhares de pessoas. O tempo de que se dispõe perante a cheia repentina de uma ravina é – sabemos isto há décadas – escassíssimo e muito precioso. Por isso a pré‑emergência, que deveria estar inserida numa cultura de risco muito mais enraizada no imaginário cultural e desenvolvida no plano institucional, é absolutamente crucial.
A resposta, porém, não é apenas a prevenção. É também a minimização dos danos e a reparação das agressões. É devolver espaço à natureza, incorporando ao mesmo tempo zonas híbridas como os parques inundáveis. As chamadas SBN (Soluções Baseadas na Natureza) são uma ferramenta absolutamente imprescindível que, ainda que não possam apagar todas as cicatrizes que traçámos no território, podem sim tapar as feridas e evitar que se inscrevam novas na pele do nosso país. Recuar é afastar‑nos da dominação abraâmica da Terra. Como partilhou o Colégio de Geólogos e Geólogas da Catalunha alguns dias depois da DANA, num documento intitulado “À beira do rio não faças ninho”, palavras como decrescimento e desconstrução deveriam deixar de ser uma utopia para se tornarem factos.
O novo mundo que devemos ser capazes de erguer passa tanto por construí‑lo com materiais novos como por desconstruir o antigo e as suas vigas carcomidas. Será edificado sobre novos alicerces, tanto no plano cultural como no plano físico, onde terá de conviver com a natureza em vez de se impor a ela. Terá também de contar com pessoas capazes de o entender, de o apreender em toda a sua amplitude, de velar pelo bem da natureza e dos humanos (que são exatamente a mesma coisa) e de encarar o futuro não como uma meta ou uma fotografia triunfante, mas como o passo sempre intermédio num caminho que irá mudando ano após ano devido aos solavancos do aquecimento global.
original disponível em : https://www.sostenible.cat/node/131304




