APONTAMENTOS
DO ESPANTO NA CRISE DO COVID19
Discutir
jornalismo nunca é demais. O jornalismo é um dos pilares da democracia, a
instituição que aponta, critica, debate os problemas e os desafios de uma
sociedade. Se é essencial no dia a dia, em tempos normais, torna-se
dramaticamente imprescindível em épocas de crise. Como a atual, em que uma
pandemia capotou o modus vivendi global.
A jornalista
Cremilda Medina, professora titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da
USP, debruçou-se com seu grupo de pesquisa, Epistemologia do Diálogo Social,
“sobre os relatos, narrativas e comentários que vêm se sucedendo nas mídias” em
relação à covid-19. O texto a seguir é uma importante contribuição acadêmica
para o debate sobre o papel do jornalismo na superação deste angustiante e
desafiante momento enfrentado por todos nós.
Luiz
Roberto Serrano
Primeiro
momento: o despertar dos espantos
Cremilda Medina, março/abril de 2020
Dedico
estes apontamentos ao
jornalista Marcello Bittencourt,
amigo e profissional histórico da
Rádio USP, que nos deixou em
abril de 2020, vítima do
novo coronavírus.
jornalista Marcello Bittencourt,
amigo e profissional histórico da
Rádio USP, que nos deixou em
abril de 2020, vítima do
novo coronavírus.
Durante
o período da quarentena provocada pelo novo coronavírus, a produção de pesquisa
do grupo que coordeno – Epistemologia do Diálogo Social – não ficou em
isolamento. Pelos meios digitais disponíveis, fizemos reuniões e escrevemos
reflexões resultantes do acompanhamento dos relatos, narrativas e comentários
que vêm se sucedendo nas mídias. O caderno de apontamentos epistemológicos que
se segue está composto de três momentos: primeiro, observações que alinhei de
março a abril de 2020; segundo, acréscimos de maio, escritos por dois
orientandos de doutorado na USP, Gean Gonçalves e Carolina Klautau; terceiro,
uma leitura cultural que fiz sobre os depoimentos de 129 jornalistas,
publicados no portal Jornalistas &
Companhia, no início de junho.
Trata-se de um
caderno de apontamentos aberto, de indicação de tendências em processo no vale
das incertezas e do provisório.
Volatilidade,
incerteza, complexidade, ambiguidade – quatro variáveis epistemológicas que
Paulo Roberto da Silva Gomes Filho (coronel de Cavalaria do Exército) captou de
bibliografia internacional para analisar o atual momento em artigo publicado no
jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 25 de março de
2020. Li com total sintonia o conteúdo de cada uma dessas quatro noções que o
autor vincula à interpretação da atual pandemia e aos desafios decisórios das
sociedades em estresse perante a expansão implacável da doença coletiva.
Para o autor, a volatilidade se
manifesta na extrema velocidade dos acontecimentos; a incerteza, desencadeada
pela volatilidade, provoca uma pluralidade contraditória e complexa de
decisões; o que, aumentando o grau de incertezas na complexidade, leva à
ambiguidade de perspectivas, discordâncias e discrepâncias culturais. Esse um
caldo maldito na produção de sentidos que regem os discursos e as ações
práticas no enfrentamento da adversidade planetária.
Não imaginei que, em seminários do
fim dos anos 1980, ao trazer à pauta epistemológica dos saberes científicos e
dos saberes cotidianos os desafios da Era das Incertezas – sobretudo no que
tange às estratégias da comunicação perante a pluralogia social – tivesse hoje
a atualização de tal avalanche de interrogantes. Estas, que estavam presentes
nas últimas décadas de teoria e prática do Saber Plural (ou do projeto de
pesquisa iniciado em 1990 na Universidade de São Paulo, sob o título “O
discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas”), enfrentavam
comportamentos e concepções que partiam da leitura do real na perspectiva
reducionista, ignorando os fatos indetermináveis e apostando em precisas
determinações. Mas agora, mergulhados no temporal da incerteza, da complexidade
e do imponderável, numa velocidade desabalada e numa ambiguidade de
interpretações, a antiga crise de paradigmas atinge a dimensão da vida e da
morte.
Seguem-se apontamentos do espanto,
alimentado acima de tudo pela frustração da promessa humanística da racionalidade
tanto na experiência cotidiana quanto na reflexão analítica ou nas informações
factuais das narrativas da contemporaneidade:
1 – Acrescentaria às variáveis da complexidade e
da ambiguidade, as recorrentes dicotomias simbólicas que leem o Real. Nesta crise,
seja ao abordar momentos precursores, seja na atual emergência da calamidade
planetária, é difícil encontrar interrogações ou reticências que ampliem o
horizonte estrito de dois lados. Mesmo ao mobilizar a ajuda da ciência para
diagnosticar esta ou aquela solução, raramente se colhem informações que
ultrapassam a lógica dual do isto ou aquilo. A área médica, diante de
prescrições múltiplas e incertas de medicamentos ou de vacinas possíveis tende
a oferecer à opinião pública, via meios de comunicação social, alternativas por
vezes dissonantes; a pesquisa biológica ora parece competir na rota de quem
chega mais rápido à decifração do vírus, ora reconhece um percurso unitário (e
solidário) dos pesquisadores que, humildemente, não estabelecem prazos para a
vitória contra o desconhecido inimigo.
Em meio aos relatos que não aplacam a
inquietude e o medo, ainda se encontram vozes científicas que ensaiam armar
nexos complexos não só sobre a natureza do vírus como as circunstâncias
socioculturais, as geopolíticas e as demografias em que o inimigo comum opera.
Todos os dias, porém, repórteres, comentaristas e âncoras clamam pela voz
científica mais reducionista que complexa, mais “didática”, persuasiva, do que
reticente, aberta à recepção. Há momentos humanizados quando o médico e
pesquisador se torna vítima da doença ou, no extremo, é mais um número nos
óbitos: então, diante da impotência individualizada, a área médica afunda no
espanto comum a todos os habitantes do planeta.
Nesse tumulto, também se convocam os matemáticos,
requisitados para expor seus modelos da pandemia; estatísticas daí decorrentes
repercutem nas entrevistas aos jornalistas, em geral, duas possibilidades.
Novamente aparecem dicotomias de dados numéricos que oscilam na figuração de
curvas em direção ao pico da montanha ou em direção ao planalto. (Os
jornalistas lidam mal com as estatísticas e os técnicos que as formulam em
modelos matemáticos também não conseguem apresentar múltiplas leituras da
realidade epidemiológica que as abstrações numéricas tentam captar. E quando
transpõem o campo positivista das afirmações, para lançar dúvidas, os
repórteres não captam a humilde posição científica e repetem no dia seguinte a
mesma expectativa de dados e gráficos assertivos, definitivos, o velho conceito
de certo e errado e não da inserção dos dados em um contexto.)
Mergulhados no caos, os trabalhadores
das frentes de saúde, pública ou privada, administram um estresse que se torna
visível na comunicação coletiva também numa dicotomia: ou a ameaça anunciada de
falta de equipamentos para cuidar dos infectados ou a ameaça à própria vida.
Sujeitos plurais tanto nas especificidades profissionais quanto nas biografias,
são reduzidos, na maioria das histórias, a um anonimato ou nomes ilustrativos
sorteados para o elogio grupal de palmas ou para compor os trágicos números de
óbitos. (Um dia, talvez, haverá tempo para a autoria mediadora e termos à
disposição histórias de vida que simbolizem a densidade dos protagonistas
sociais da pandemia. Por enquanto, aqui ou ali, se olhem rápidos perfis, sejam
profissionais da saúde, registros dos que morrem vítimas da doença ou
personagens do cotidiano à deriva.)
Em meio a esses quadros binários, em
que a produção simbólica pende para um lado ou para o outro, quero ressalvar
que se encontram fontes científicas e algumas autoridades de saúde com
discursos complexos. Num tom mais moderado, sem elocução de superioridade ou
agressividade, assumem a angústia diante dos desafios da experiência inusitada,
da incerteza na pesquisa e do imponderável da doença não domada. Ao apresentar
informações inconclusivas, a ciência atualizada expõe para aqueles que insistem
no desejo do conhecimento definitivo e do conforto das certezas, uma dose
gradual e muito educativa da natureza complexa dos fatos que nos cercam.
Já os jornalistas – comentaristas,
âncoras ou repórteres -, com raras e destacadas exceções, lidam mal com
aprendizado, no dia a dia, da pauta incerta no escuro da pandemia. Quem afunda
nos acontecimentos, parece não se valer da noção de processo, dos conflitos a
ele inerentes, da intrincada intercausalidade de forças que regem os fatos,
deixando para trás o velho conceito de causa e efeito numa linearidade
previsível.
2 – Na manifestação representantes políticos da
sociedade ou na ação que desenvolvem sob a rubrica de políticas públicas, o
discurso toma o rumo de sempre, como se a complexidade humana e de todos
elementos naturais coubesse ou numa concepção única de um monólogo
esquizofrênico ou na dicotomia situação/oposição. Há quanto tempo pesquisadores
que nos inspiram no Projeto Plural, abordam a pluralidade, a diversidade, os
múltiplos polos de abordagem da prática política contemporânea? Daniel
Innerarity, um deles, reconhece a dificuldade para administrar politicamente os
conflitos do dialogia ( da pluralogia, digo eu). Isso em situações de aparente
normalidade, imagine-se no caos em que nos encontramos com a covid-19. Muitas
palavras se dividem em dois campos e seus vocalizadores se acham certos para
tentar fazer vingar o seu discurso.
O Brasil vive essa situação em torno
do comando duplo em conflito de duas verdades: isolamento horizontal ou
isolamento vertical como políticas opostas de dois extremos nas tentativas de
enfrentamento da infecção. Se, no País, a dualidade vem sendo lida como um
duelo entre saúde pública e economia, na Suécia e Dinamarca, são políticas
opostas contra o vírus – “enquanto dinamarqueses adotam isolamento mais
radical, suecos mantêm escolas, bares e restaurantes abertos” (matéria
publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 28 de março de 2020).
Não é um espanto que dois países cuja separação são apenas oito quilômetros e
uma ponte, tenham duas reações políticas opostas? E não é um espanto que em
abril a Suécia, diante da expansão não controlada da doença, tenha que se
reequacionar, reconhecendo como certa a estratégia que antes recusou?
3 – A gravidade das situações sociais, posta a nu
perante a invasão indiferenciada do vírus, revela de modo cruel os saldos
históricos da desigualdade humana – do saneamento à distribuição de qualquer
ordem de riquezas acumuladas, da condição de trabalho à educação e à saúde
coletiva. As imagens urbanas das sociedades mais desfavorecidas escancaram
“comunidades” sem a estrutura comunitária tal qual a desenhou o mapa simbólico
da civilização, na retórica das Luzes. Se no século passado se debatiam os
fracassos da racionalidade iluminista, hoje, a humanidade de todas as latitudes
– e penso sempre na África em primeiro lugar – que projeto se pode escrever
para este abalado século XXI? Falo na África, porque quando, em Moçambique, ensaiava
captar em seus escritores, como e o que sonhar naquela situação de miséria que
minha experiência de repórter percebia, perguntei, em 1986, ao poeta Calane da
Silva, se era possível sonhar nessa terra. Ele me respondeu:
ainda achas que temos sonhos
ainda achas que estamos vivos
não achas que nós, vivos,
estamos perdidos
pessoano não sou
venho do bairro limítrofe
onde a pólvora do mundo
conosco acabou
(Calane
da Silva escreveu de improviso a reposta à minha pergunta num guardanapo, em
Maputo, na noite de 20 de setembro de 1986.) Meu livro sobre os escritores
africanos de língua portuguesa traz como epígrafe este poema e em sua homenagem
formulei minha esperança no título, Sonha mamana África (1987).
E agora, Calane, o que a “pólvora” do novo coronavírus fará?
4 – Reflexões, análises e diagnósticos,
comportamentos culturais e propostas de educação higiênica coletiva, pinceladas
de contextos dramáticos nos hospitais, nas filas da Caixa Econômica para
retirar informações e auxílios emergenciais – eis imagens do desespero como
nunca se viu perante a morte e o despejo dos anônimos, invisíveis, deserdados
ou simplesmente infectados em valas comuns. Eis o espanto de uma história
coletiva, nacional, grupal, individual.
Nunca
a reportagem presencial foi tão requisitada para
ensaiar narrativas dos limites humanos. A recepção, essa misteriosa,
imprevisível recepção, ainda não se anestesiou perante o desfile da tragédia da
impotência, mas enviou um recado ao Jornalismo clássico – notícia boa não é
notícia –, reverteu essa afirmação técnica que tanto alimenta o denuncismo, e
solicitou histórias de protagonistas exemplares, coletivos solidários, janelas
de afirmação do humano ser que soltam a voz do apertamento emocional. E a
reportagem, aqui e ali, tem ido ao encontro desse barco à deriva, aliás como
sempre o fez a poética no Gesto da Arte desde que o Sapiens o registrou na
pedra.
Questão que se coloca a boa parte dos
comentaristas e de jovens jornalistas: como atuar numa produção simbólica
assertiva em lugar de interrogativa? Como ensaiar a decifração de uma realidade
cifrada, que escapa das lógicas pré-estabelecidas para diagnósticos e de
prognósticos? Como observar o painel dos espantos sem a tentação única do
simplório denuncismo? Como motivar a reversão de atitudes egocêntricas na
prevenção, sem o tom arrogante de quem sabe das coisas? Como se deixar
impregnar, pelos cinco sentidos, da experiência inquieta de perguntas sem
respostas, da esperança e da dor no cotidiano dilacerado?
Imagem: LNNY
Blog/Ilenia Tesoro
Segundo
momento: acréscimos à reflexão
Inquietações
que surgem
Gean Gonçalves, doutorando em Ciências da
Comunicação na ECA-USP, maio de 2020
Comunicação na ECA-USP, maio de 2020
Em Ato presencial, mistério e transformação (2016),
Cremilda Medina, como autora, jornalista, pesquisadora e professora, defende a
relevância para a comunicação e para a pedagogia da interação face a face, a
experiência que integra os cincos sentidos, frente à euforia das relações à
distância e dos suportes tecnológicos. A pandemia trouxe de fato o lembrete
coletivo da importância do contato presencial, do convívio? Ou ela irá endossar
ainda mais entrevistas e trocas de informação pela internet e pelo telefone no
jornalismo e ampliará o sistema de ensino à distância?
A
mortalidade, esse dano da doença, que o jornalismo enfrenta diariamente em
outras pautas por meio da reflexão comunicacional de como narrar a tragédia, a
morte e o luto, nesse momento, podem deixar novas propostas narrativas,
estratégias de solidariedade? Enfrentamos o vício da estatística: dos gráficos
que informam números em crescimento exponencia e números que não comunicam
vidas perdidas. Mas há projetos como o Inumeráveis, um memorial dedicado à
história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil, que culminou na capa
de O Globo do dia 10 de maio de 2020: “10 mil
histórias. Evento mais letal no Brasil em 102 anos, pandemia da covid-19 chegou
ontem oficialmente a 10.627 mortes. Para que a dimensão humana da tragédia não
se perca na frieza das estatísticas, O Globo homenageia as vidas reunidas em um
memorial virtual”.
Também fiquei
inquieto com uma pergunta lançada pela BBC em uma reportagem intitulada
“Coronavírus: por que países liderados por mulheres se destacam no combate à
pandemia?” (BBC, 22 de abril de 2020). Longe de reduzir essa avaliação a uma
questão biológica, ou cultural dos sexos, que a solução à crise está na
imitação de políticas de outros contextos ou aferir que a questão de gênero
resume quem tem mais eficiência, homens ou mulheres, há, no entanto, um
componente de gênero (cultural) na condução da saúde: mulheres são 70% das
profissionais da área no mundo. Poucas são as chefes de Estado no mundo
(Islândia, Finlândia, Dinamarca, Alemanha, Nova Zelândia, são algumas), mas
elas têm obtido resultados mais positivos. Isso revela, ao meu ver, que há
pluralidade e outros afetos políticos, outros caminhos que elas levam mais em
consideração: percebem distintos grupos com múltiplos graus de vulnerabilidade
e não subestimam a gravidade da pandemia; adotam uma comunicação mais próxima e
clara com a população, há mais solidariedade às pessoas atingidas pelos efeitos
econômicos da pandemia. Em contraposição, as lideranças masculinas tendem a
seguir estratégias semelhantes entre si e mais simplistas, com metáforas
bélicas no enfrentamento dos dilemas da pandemia.
Caberia ainda
pensar que fomos abalados pelas oscilações políticas de indignação, pelas ondas
de desinformação, pelos acirrados discursos de ódio e de que algum modo, no
momento, esses comportamentos culturais e midiáticos causam ainda mais
nebulosidade sobre como iremos avançar nesse contexto? Se notícia boa não é
notícia. Como dar importância as narrativas jornalísticas sem reforçar o véu
positivista que cobre as principais atividades de imprensa no País: o valor da
verdade, da imparcialidade ao reportar os fatos.
Só
perguntas, mais perguntas
Carolina Klautau, doutoranda em
Ciências da Comunicação pela ECA-USP
Ciências da Comunicação pela ECA-USP
Saber lidar com as
incertezas é apontado por Edgar Morin como um dos sete saberes necessários à
educação do futuro. A ideia é defendida pelo sociólogo francês no livro com
este mesmo nome, publicado no Brasil em 2001. E quase vinte anos após a
primeira edição da obra, a realidade nos coloca exatamente num lugar de que
saber lidar com as incertezas é mais do que uma habilidade, mas uma questão de
sobrevivência.
Mas, antes mesmo
desta publicação, a noção e sua importância já vinham sendo tensionadas na
Universidade de São Paulo, no início da década de 1990, pelo grupo de pesquisa
“O discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas”, liderado por
Cremilda Medina, e que gerou uma série de livros que fazem parte do projeto
Saber Plural. Médicos, químicos, escritores, jornalistas, artistas, físicos e
mais uma porção de outros pesquisadores, de diversas áreas do conhecimento, se
reuniam para debater a crise dos modelos explicativos, a postura reducionista
das formas de apreensão do mundo e o aprisionamento do conhecimento em
disciplinas. Também ganhava destaque a problematização do determinismo e o
caminho das incertezas, justamente, como uma via possível à tentativa de
diminuir os fenômenos do mundo a uma postura de causa e efeito.
Das tantas
aproximações entre o caminho percorrido pelos pensadores brasileiros (nos anos
de 1990) e pelo sociólogo francês (no início dos anos 2000) está, justamente, o
reconhecimento de que é preciso levar em consideração, lidar e incluir a
incerteza como uma das respostas do mundo diante dos nossos questionamentos,
angústias e ansiedades. Mundo este que é, ele mesmo, volátil, incerto, complexo
e ambíguo.
Em “Apontamentos do
espanto na crise covid-19” (2020), Cremilda Medina mobiliza algumas noções que
já fazem parte de sua visão de mundo (ambiguidade, complexidade, pluralogia,
signo da relação e a narrativa jornalística autoral), para tentar compreender
as questões que se colocam diante dos nossos olhos, neste exato momento, e para
refletir sobre como o jornalismo, como narrativa da contemporaneidade, tem
lidado com o terreno pantanoso sobre o qual temos pisado diariamente.
Quando o isolamento
social vai chegar ao fim? Teremos vacina? Quantas vítimas o coronavírus vai
fazer no Brasil e no mundo? Quais políticas públicas serão desenvolvidas para
que os estragos econômicos e sociais sejam minimizados? As empresas vão
sobreviver? Nós, como espécie, vamos sobreviver? Não há, neste momento,
respostas. Só perguntas. E muitas perguntas.
Em 2020, precisamos
lidar com as incertezas de viver num período histórico que, a todo momento, nos
confronta com o par de opostos complementares mais antigo de todos e que a
mitologia, esse saber ancestral, não cansa de tentar articular: a tensão entre
vida e morte. Vale ressaltar que não é exclusividade da segunda década do
século XXI a convivência com as incertezas – mas é certo que ter a consciência
de que está circulando por aí um vírus que já matou mais de 500 mil pessoas no
mundo inteiro agrava, consideravelmente, a nossa situação como espécie e
humanidade. Dito de outra forma, “agora, mergulhados no temporal da incerteza,
da complexidade e do imponderável, numa velocidade desabalada e numa
ambiguidade de interpretações, a antiga crise de paradigmas atinge a dimensão
da vida e da morte“ (MEDINA, 2020).
Se existir já é um
desafio travado cotidianamente, especialmente por aqueles trabalhadores que
atuam nos serviços essenciais ou que estão na linha de frente de combate ao
vírus, como narrar essa existência? Como ser jornalista, repórter, e falar
sobre um assunto que possui mais interrogantes do que respostas? Para Medina,
parece que ainda estamos longe de uma mirada complexa de toda a situação. Para
ela, “mesmo ao mobilizar a ajuda da ciência para diagnosticar esta ou aquela
solução, raramente se colhem informações que ultrapassam a lógica dual do isto
ou aquilo”. Ou seja, nos afastamos dos opostos que se complementam e nos
aproximamos da “descomplexificação” do real: a percepção do mundo sob um olhar
dicotômico.
A dicotomia, por
sua vez, não é fruto da falta de informações. Pelo contrário: parece que
vivemos, também, uma pandemia de informações (o que já foi até chamado de
infodemia), de dados, gráficos e estatísticas. Só que dados, gráficos e
estatísticas sem contextualização pouco informam e orientam; eles nos deixam,
na realidade, mergulhados em um ambiente caótico. Parece que a grande batalha
particular do jornalismo não é a contra o vírus, mas contra a lógica
positivista que ainda impera na tentativa de narrar o real – os sujeitos
plurais, os protagonistas do cotidiano, as histórias de vida ficam relegadas ao
segundo plano da narrativa, enquanto os números assumem a linha de frente. Só
que números, mesmo que expressivos, não causam tanto espanto e sensibilidade
quanto um nome, um rosto.
É por meio da
articulação entre os números e as histórias de vida que o jornalismo pode
tentar se aproximar da compreensão da complexidade na qual estamos mergulhados,
assumindo, como os cientistas, uma postura de humildade, preferindo “lançar
dúvidas” a atuar no “campo positivista das afirmações”. Quem diria que, um dia,
a ciência poderia flertar mais com a incerteza do que o jornalismo que tem na
própria incerteza, ela mesma, a sua matéria-prima? Sim, porque o que irrompe
sem avisos e sem pedir licença no real é aquilo que o jornalismo narra – só
lembrar de alguns dos valores-notícias da área.
Então, para onde
correr? Para onde pode o jornalismo se voltar nesse momento em que pisamos em
areias movediças? Para as histórias de vida e para as especificidades das
biografias “que simbolizem a densidade dos protagonistas da saúde” (MEDINA,
2020). O olhar atento aos sujeitos plurais, a incorporação dos dados e a
contextualização tem a chance de ser uma boa combinação para narrar, de forma
complexa e sensível, nosso período.
Como atuar numa
produção simbólica assertiva em lugar de interrogativa? Como ensaiar a
decifração de uma realidade cifrada, que escapa das lógicas pré-estabelecidas
para diagnósticos e de prognósticos? Como observar o painel dos espantos sem a
tentação única do simplório denuncismo? Como motivar a reversão de atitudes
egocêntricas na prevenção, sem o tom arrogante de quem sabe das coisas? Como se
deixar impregnar, pelos cinco sentidos, da experiência inquieta de perguntas
sem respostas, da esperança e da dor no cotidiano dilacerado? (MEDINA, 2000).
As perguntas que
finalizam os “apontamentos do espanto” de Medina podem até continuar sem
resposta, mas o caminho para tentar responde-las passa por uma possibilidade: a
do exercício do signo da relação, da reportagem presencial. Caminho esse,
aliás, que não é possível apenas em um contexto de pandemia causada pelo novo
coronavírus, mas, sim, sempre que o jornalismo quiser tentar uma compreensão e
não a explicação do real.
A relevância da
presentificação dos corpos para a narrativa, inclusive, tem sido apontada por
jovens jornalistas como uma das principais atitudes para a realização de uma
reportagem complexa e que reconhece e centraliza o lugar dos protagonistas
sociais do cotidiano no texto jornalístico. Essa visão foi possível após a
realização de uma atividade na disciplina de reportagens especiais, do curso de
Jornalismo, na Universidade Anhembi Morumbi. O exercício consistia em estudar
uma grande reportagem e conversar com o repórter sobre seu processo de diálogo
com personagens, escritas de texto, apuração, inspirações e dificuldades. Dos
15 jornalistas com quem os alunos conversaram, todos, sem exceção, situaram que
suas melhores reportagens foram realizadas sob o signo da relação – quando se
estabeleceu um encontro de corpos, permeado pelos cinco sentidos, em muito mais
do que uma entrevista, um diálogo entre duas, ou mais, pessoas, com suas
personalidades complexas.
Mas, voltando ao
jornalismo inserido no contexto do espanto, ainda seguindo a linha da
importância de ir ao encontro do Outro e dos cinco sentidos mobilizados para a
narrativa, podemos encontrar respiros de repórteres que parece que conseguiram
entender a importância das histórias de vida e como elas podem nos
sensibilizar, muito mais, do que os números e gráficos descontextualizados.
O “bom exemplo” vem
da Itália, escrito pelo repórter espanhol Daniel Verdú, dois dos países mais
atingidos pelo vírus, para o portal El País. A publicação de março de 2020, já
na manchete, pode sensibilizar o leitor: “Saída do confinamento na Itália cheia
a café”. Mesmo quem nunca foi à Itália, tem a chance de ser impactado pela
matéria. Basta, talvez, gostar de café e, é claro, de caminhar por aí.
Imagem:
Reprodução
Terceiro momento: impressões coletivas
Cremilda Medina, junho de 2020
Foram
necessárias duas semanas para ler e anotar as vertentes simbólicas nos
depoimentos de 129 jornalistas brasileiros. Ação de grande significado do
portal Jornalistas & Companhia, dirigido por Eduardo
Ribeiro, a quem presto homenagem, a ele e sua equipe, por essa trabalhosa
operação. Como estudiosa e profissional da comunicação social, não poderia
perder a oportunidade de me debruçar sobre o pensamento coletivo de uma
oportuna amostra de como se pensa o Jornalismo no País. Se a pandemia da
covid-19 provocou este espaço de reflexão, em que, inclusive, me convidaram
também a participar do conjunto de depoimentos, foi para mim muito rico anotar
neste caderno de apontamentos tendências de leitura cultural do fenômeno social
em que atuam jovens e velhos jornalistas, profissionais de várias regiões e de
mídias, das tradicionais às da era digital no Brasil.
Alinho,
a seguir, os principais temas dos 129 depoimentos, sem nomear autores, apenas
alinhando posições acumuladas nas anotações que fiz de cada um. Um convite que
reforço para o leitor do portal para ele próprio traçar seu itinerário. Da
minha leitura cultural, sem pretender induzir a minha interpretação, alinhavo
oito tendências nos depoimentos que responderam às duas questões propostas
por Jornalistas & Companhia: que lições e qual o legado
da atual experiência profissional na pandemia do novo coronavírus?
1 - Jornalismo sério, independente, fundamentado
A grande maioria
dos profissionais que fizeram sua leitura da produção simbólica nas atuais
práticas jornalísticas brasileiras, enalteceram o revigoramento dos valores
tradicionais perante as ameaças das notícias falsas, distribuídas em redes
sociais. Rigor na apuração, correção e compromisso com a sociedade têm
atribuído credibilidade e aumentado a confiança na informação qualificada
produzida por profissionais que prezam por sua autonomia e os princípios
clássicos. Para esses, o Jornalismo tem mostrado força, na crise da pandemia,
no confronto com a voz oficial e sobretudo nas frequentes hostilidades do
governo Bolsonaro. Nesse sentido, a imprensa (lato senso) assume o papel
histórico de ator em uma democracia. Para os profissionais, a informação sólida
é a principal munição. Informação e análise, dizem alguns. Há os que apontam
uma carência: sobra opinião e falta reportagem.
De qualquer forma,
nas circunstâncias de difícil trânsito externo para a reportagem, os
depoimentos salientam uma cobertura de porte auxiliada pelo aprendizado com a
inteligência de dados. Também se observam as dificuldades para trabalhar com
precisão no contexto de aceleração e acúmulo de informações que circulam nas
infovias. Os mais eufóricos arriscam diagnosticar que esta é a melhor e mais
completa ação do jornalismo brasileiro. Há até quem se sinta muito estimulado
por esse indomável movimento que torna a expressão mais sedutora. Mas lá vem a
tônica de grande parte destas vozes: acima de tudo, ética, conhecimento e
experiência qualificam a informação jornalística. Por isso, há quem advogue o
aprimoramento da investigação para que se diferencie do “lamaçal do mundo
digital”. Ou que reconheçamos, o jornalismo na sua essência, uma atividade de
baú de luxo em meio à whatsappização. Vence o tom positivo da profissão –
afinal, afirmam, a população aprendeu com o Jornalismo a salvar vidas.
No âmbito mais
particular, levanta-se uma questão: esses heróis de linha de frente irão
ampliar a autonomia do jornalista? Outras perguntas frequentes: apurar, checar,
rechecar sem sair de casa? No conflito com as fake News, ficará permanente
outra interrogação do consumidor de informação – será que isso é verdade? Os
mais antigos na profissão, que conhecem a resistência cultural e física em
outras crises, reafirmam não dúvidas de mudança radical do fenômeno, mas a
afirmação da chave essencial – a conquista da credibilidade ou a ideologia da
verdade há de vencer.
Acréscimos
espalhados ao longo dos 129 depoimentos: chega de jornalismo declaratório,
atenção à informação regional, local, aprofundar a cobertura em saúde e ciência
(meio abandonada nos últimos tempos), o Brasil das periferias e suas histórias
merecem seu lugar nas narrativas da contemporaneidade.
2 - E as redações vão acabar?
Numerosos
depoimentos ensaiam a avaliação de uma mudança importante – o trabalho remoto e
o fim do jornalismo impresso marcarão a nova fase. Há dúvidas quanto essa
transformação causada pelas circunstâncias atuais. As posições se multiplicam
em três vetores: o grupo que alimenta a esperança de que o convívio da redação
volte – tão importante para a discussão de pauta, as trocas de conteúdo e as
relações humanas dos próprios profissionais -, ainda que, como em outras etapas
históricas, as salas de redação possam encolher; o grupo entusiasta das
tecnologias aposta na multiplicação de mídias digitais e o fim dos
conglomerados tradicionais; e grupo que torce pelo equilíbrio entre as
situações extremas e visualizem no futuro a possível a construção de modelos
híbridos. Para os que defendem as clássicas salas de redação, é aí que o
conteúdo se sobrepõe à forma, o planejamento e a edição à improvisação, o
núcleo apurador na elaboração da notícia às fake news. Claro, nos tempos
digitais, a edição requer mais velocidade, mais agilidade.
Para os produtores
independentes de veículos alternativos, não há como fugir da força da internet.
As publicações segmentadas enfrentam como não poderia deixar de ser a velha
questão do jornalismo regido por princípios sólidos, porque já se desfez,
segundo alguns analistas deste dossiê, a ilusão de democratização dos meios nas
redes, que acabou em novas concentrações e na avalanche de notícias falsas. Por
outro lado, parece que em tempos de isolamento e de trabalho remoto, há, para
uma parte dos profissionais, a reafirmação da rua – o repórter em trabalho de
campo não seria superado na coleta doméstica. “Parece que estou fazendo
jornalismo em Marte”, queixa registrada em um depoimento.
Entre ganhos e
perdas, mesmo para quem não é otimista, seremos, a partir da pandemia, menos
propensos aos boatos das redes sociais. Deverá imperar também a diversidade de
mensagens, de públicos. Rádio, televisão e webs consolidaram suas posições,
mas, dizem os mais ponderados, editar será uma operação mais complexa que não
se resolve só no home office. Alguns estrategistas consideram esta uma boa
oportunidade de fidelizar os consumidores de informação jornalística, o que
significa, no fundo, estar mais atento às demandas da cidadania. A criatividade
desafiará os jovens desta profissão, tão reconhecida no momento. Se com o
celular, a grande vedete, os profissionais se acham no centro da cena, uma
jornalista experiente confessa em contraponto: ficamos menos valentes,
destemidos, mais virtuais, menos pessoais. Outro jornalista da velha geração é
sereno: nosso futuro é uma obra aberta.
3 - Ameaças no mercado de trabalho
Uma boa parte dos
depoimentos acentuou a nova crise no mercado de trabalho; nova, porque
ocasionalmente vem à tona esse crucial tema. Desta vez é para valer – muitos
repórteres perderam o emprego. Além dos que foram vítimas da covid-19,
adoeceram e morreram. Diante dos limites trágicos do exercício profissional do
Jornalismo, afloram desejos e novas expectativas nos testemunhos:
·
– Junto com os profissionais da
saúde, os do jornalismo ganham novas forças para lutar por seus direitos;
·
– As empresas, ao mesmo tempo que vão
investir em tecnologia, tenderão a valorizar os trabalhadores da comunicação
social;
·
– Haverá estímulo para empreendedores
no jornalismo como em outras atividades do mercado na era pós-industrial;
·
– A retração econômica é um motor de
criatividade;
·
– O reconhecimento e expansão de
coletivos das periferias está em alta.
·
– Há um novo desafio: manter e
expandir o número de pessoas dispostas a pagar pela informação de qualidade.
·
– Torna-se visível a necessidade de
capacitar os novos profissionais na formação jornalística (os professores
universitários da área sublinham essa emergência nos cursos tradicionais).
Imagem:
Pixabay
4 - Terceira,
quarta guerra?
Os mais dramáticos apontam, nos
depoimentos, a função do jornalista como correspondente de guerra. Várias
guerras: os que olham para a História e as duas guerras mundiais do século XX,
falam da terceira, a do novo coronavírus. Nessa pandemia, foi preciso deixar
certas letargias, segundo a leitura dos que se remetem à atual Terceira Guerra
Mundial. Por exemplo, abandonar a letargia do press-release, da informação
oficial e seus bastidores, sair das mininotas, da visão rasa do mercadismo, não
ter como omitir, pelo contrário escancarar, a desigualdade social, a exclusão e
a invisibilidade humana. Em determinado diagnóstico, hoje só uma pequena
parcela vocalizaria a opinião de aluguel. Nesse conflito, os correspondentes de
guerra são alvos de ataque numa polarização entre jornalistas e poderes. Até o
dia 15 de maio, dá conta um testemunho, a mais trágica consequência da guerra contra
a covid-19 – 64 jornalistas morreram.
Mas ainda se aponta uma quarta
guerra, a de uma classe profissional atuante, vibrante contra um governo
obscuro. E tudo que compõe a luta contra a desinformação. Há, em particular,
referências ao conflito com o Ministério da Saúde e os seguidos desencontros de
informação técnico-científica. Os jornalistas que viveram os anos 1960-70 da
ditadura militar, assombram os mais jovens com a atual ameaça à democracia. Nas
três frentes dos confrontos – pandemia, economia e ataques do governo -, só
mesmo a afirmação do velho e insuperável repórter guerra.
Num ato de contrição, um dos
experientes profissionais escreve um rodapé: é preciso reconhecer um erro das
coberturas jornalísticas pré-pandemia – o aparente desprezo pelo Sistema Único
de Saúde (SUS). Dada a importância (inclusive perante o quadro internacional
desse serviço público), espera-se que a pauta do futuro continue acompanhando
de perto as demandas do dia-a-dia das pessoas. Nesse mesmo depoimento, diante
do panorama interminável da violência urbana que recheia as edições, lamenta o
jornalista que a Arte esteja ausente.
5 - Na trilha dos
serviços
Alguns jornalistas recuperaram
o ancestral eixo de informações, aquelas que cumprem a prestação de serviços.
Mas implícita à elegia da comunicação social nestes tempos de pandemia, há quem
afirme, com convicção, que tal serviço público é movido pela força da
sobrevivência. O bem público que o jornalismo presta mobiliza, no caso atual,
as vozes dos especialistas, os dados disponíveis, estatísticas exemplificadas
em histórias humanas e toda a gama de serviços voltados para comunidades
locais, nacionais, bem como a articulação com o panorama internacional. Para
certas reflexões, não se trata de simplesmente noticiar serviços, mas
abordá-los com edição crítica. Não se entra em detalhes quanto a essa autoria
articuladora das informações, a não ser a velha e repetida desconfiança perante
a oferta oficial. A bem do equilíbrio entre trabalho de campo (reportagem de
pautas generalistas ou especializadas) e a predominância de opiniões,
comentários, editoriais, aparece a valorização dessa coluna vertebral
jornalística – a prestação de serviços.
6 - Flashes da
intimidade
Não são muitos os profissionais
que se permitem, no dossiê coletivo, abrir o coração para os sentimentos
pessoais. Aparecem então os registros da insegurança, da experiência de
trabalhar no domínio das incertezas e até mesmo do medo de contágio e da morte.
Embora as emoções sejam domadas pela coragem e a necessidade de vir à tona com
equilíbrio no processo de trabalho, como evitar dúvidas atrozes: o jornalismo
que pratico está estimulando ou não o pânico social? Ou como na radicalização
que se vive hoje, trabalhar pelos consensos? Ou, no tsumani de informações,
como resolver escolhas? Mas, além de ter de lidar com todas as inseguranças,
afirma-se a lição de que outra vez é preciso aprender a trabalhar com os
próprios medos e dores. Outra vez porque alguns, mais antigos na profissão, se
remetem a outras “guerras” vividas na frente da batalha.
Entre as anotações de
intimismo, destaca-se uma sobremaneira sutil que expressa três sentimentos à
flor da pele. O primeiro, a descoberta de que o mistério existe; o segundo, que
a verdade está em discussão, o que não é confortável para os que vivem de
certezas; e o terceiro, o paradoxo da solidão no isolamento e, ao mesmo tempo,
a conexão com uma grande teia de solidariedade. E a propósito deste
distanciamento físico, há um depoimento que lembra a história do jornalismo
brasileiro. O primeiro jornal (1808), editado por Hipólito da Costa no exílio
em Londres, chegava aos leitores brasileiros.
Imagem:
Pixabay
7 - E por falar em história...
Há uns poucos audaciosos que
entendem a presença atual do jornalismo com um novo capítulo da História do
Brasil. Expõem as seguintes tendências que dariam substância à afirmação:
·
– Aprender a lidar com o conhecimento
plural;
·
– Revalorizar as instituições;
·
– Desenvolver empreendimentos
jornalísticos mais sólidos;
·
– Praticar o jornalismo reconhecido
como esfera pública, não como fábrica de notícias;
·
– Reduzir o impacto disfuncional das
redes sociais;
·
– Exercer um papel mais agudo no
debate e ambiente político do País.
·
Neste novo capítulo analisado por um
profissional, outro lhe apõe um contraponto, um único erro histórico: exibir
por demais Jair Bolsonaro…
8 - Linguagem,
conhecimento do conhecimento (epistemologia)
Todos os sete itens aqui
propostos como tendências temáticas são muito significativos para quem estuda o
Jornalismo, seja na universidade (graduação e pós-graduação) seja na ação
jornalística dos que estão em campo e se preocupam em aprimorar suas práticas
profissionais. No entanto, chego agora a anotações muito próximas da reflexão
epistemológica da linguagem jornalística e seus desafios atuais, manifestos na
cobertura da pandemia ou projetados para o período pós-pandemia.
Uma observação preliminar sobre
a linguagem está registrada em alguns depoimentos: em se tratando de
informações urgentes, vale mudar o critério de esmero na forma e prevalecem os
conteúdos. Por exemplo, imagens imperfeitas de celular ou de ambientes não
produzidos para ir ao ar na televisão. O que dispensa a edição jornalística dos
enquadramentos formais sedutores, mas, em compensação, veicula mensagens dramáticas
da circunstância humana na pandemia.
Vale também outra emergência na
comunicação social: o deslocamento das fontes que usualmente se fazem
representar nos meios de comunicação para as periferias de exclusão ou
invisibilidade raramente abordadas nas mídias tradicionais. Indica-se aí um
rumo social da cobertura jornalística há debatido na teoria, mas longe da pauta
cotidiana. No fundo, o antigo apelo, sair dos microfones oficiais para a voz
dos que não são ouvidos.
O jornalismo desumanizado, por
falta de reportagem, também comparece como condição de narrar histórias de vida
dos doentes, dos profissionais de saúde, dos inúmeros trabalhadores que não
tiveram chance de fazer quarentena. Ver a vida acontecer, no cotidiano ora
trágico, ora comum, ora lúdico sempre foi o eixo vibrante do protagonismo
social (e anônimo) no jornalismo. (O que, aliás, as variadas expressões da Arte
também atestam nos personagens de suas narrativas.)
É nesse cotidiano do humano ser
(verbo intransitivo, não humilde verbo da voz passiva), que se descortinam os
contextos coletivos para ampliar visões parciais e também aí eleger uma
investigação com fontes especializadas que possam abrir a lente particular para
diagnósticos e prognósticos de dimensão coletiva.
Mas para essa narrativa polifônica
e polissêmica, é preciso sensibilidade (empatia) e complexidade (rigor
racional), o que parece denotar, segundo alguns pensadores aqui reunidos, uma
mudança de percepção e disponibilidade para mudar comportamentos reducionistas
ou autoritários. Na metáfora usada por desses analistas, um olhar caolho que
apenas capta um dos lados da história e dos protagonistas, olhar esse movido
pelo pensamento único e pelo conforto das certezas.
A solução apontada nestas
considerações não aporta nem nas facilidades tecnológicas, nem nas habilidades
técnicas de um profissional multimídia. Para transitar no mundo das
desigualdades sociais, das carências absurdas de saneamento básico ou de
educação, para reconhecer os mapas complexos do local, regional, nacional ou global,
o aparato de captação tranca nas mentalidades assentadas numa formatação de
rotina.
Indicam alguns que é na rua que o filtro jornalístico aprende a lidar com incertezas, inseguranças, conflito de verdades e coragem nos enfrentamentos. Da viagem no mundo e dos encontros/desencontros com os parceiros contemporâneos surgem pautas renovadoras. Mesmo no mar de informações (tsumani, como foi nomeado por um dos jornalistas no dossiê), a autoria criativa descobre sua narrativa no calor dos acontecimentos. Viver é editar e quem vive com o radar fino e empático da captação, poderá filtrar com sensibilidade complexa, nunca com perfeição, mas em sintonia com a voz íntima da ética possível.
Indicam alguns que é na rua que o filtro jornalístico aprende a lidar com incertezas, inseguranças, conflito de verdades e coragem nos enfrentamentos. Da viagem no mundo e dos encontros/desencontros com os parceiros contemporâneos surgem pautas renovadoras. Mesmo no mar de informações (tsumani, como foi nomeado por um dos jornalistas no dossiê), a autoria criativa descobre sua narrativa no calor dos acontecimentos. Viver é editar e quem vive com o radar fino e empático da captação, poderá filtrar com sensibilidade complexa, nunca com perfeição, mas em sintonia com a voz íntima da ética possível.
Há quem acuse a formação
universitária de ser por demais teórica e pouco prática. A pesquisa que detecta
deficiências pedagógicas, porém, não se limita a essa dicotomia, uma vez que em
se tratando de mudança de mentalidades e comportamentos, tanto precisamos de
reflexão para inspirar práticas e das práticas se extraem as questões para a
reflexão. Mesmo na loucura da atual crise, os profissionais param e tiram da
agitação incontida ou do isolamento depressivo, interrogantes sobre o
Jornalismo. Mesmo porque está mais do que nunca evidente a sobrevivência
profissional associada a uma marca. Pode até ser um lance de marketing, no
entanto, um professor prediz para os novos alunos da profissão: já no segundo
dia da faculdade, deve assumir o desafio de repórter e de autor.
Curioso que, entre essas
considerações, duas chamam a atenção na epistemologia do jornalismo: a marca
autoral dos profissionais depende da aprovação da sociedade, não um desejo
vaidoso de se diferenciar; depois, quem garante que as boas intenções do autor
chegarão para convencer as audiências coletivas ou as tribos digitais? (Tenho
pra mim que recepção é mistério, por mais que se tracem metodologias de
pesquisa para a quantificar e qualificar.)
A oitava
parte deste itinerário temático tem o arremate que cola com a primeira, o novo
jornalismo não seria a redescoberta do antigo? E lá vêm os faróis iluminados ao
longo da história: rigor na apuração; zelo na linguagem; compromisso com o
interesse público, defesa inegociável da democracia. Para um dos profissionais,
o que se resume na boa e velha reportagem.
Não
poderia encerrar esta leitura cultural sem referir o fecho em verso que Assis
Ângelo escreveu para a edição especial de Jornalistas & Companhia.
Não há companhia mais oportuna do que a produção poética de raiz brasileira, o
cordel, para espelhar o imaginário coletivo. Junto com arte de tecer o presente
na reportagem, o gesto da arte amplia a sensibilidade perante o Real. Assis
Ângelo expande os ecos dos 129 jornalistas ao lhes dedicar um selo histórico:
Faz se importante dizer
Que num mundo sem imprensa
Seria difícil viver
Difícil também seria
Crer no homem como um ser
Ao longo dos versos, o autor
vai rimando tempos míticos com o tempo da pandemia e o leitor navega da
transcendência cultural às amargas circunstâncias da Covid 19. Mas o pano de
fundo do jornalismo não sai de cartaz, insistindo no ato de reportar que, por
altruísmo, supera o ódio e o radicalismo. Neste capítulo, o cordelista ataca de
frente episódios do governo Jair Bolsonaro. Um diagnóstico cru: “Que bicho tem
na cabeça?/ Um vírus doido, sem cura”.
Após a catilinária de opinião
política, o cordel de Assis ngelo volta à elegia de profissionais, daqueles que
fazem a história do jornalismo brasileiro. E numa justa homenagem dedica a
palavra rimada àqueles que fazem parte desta edição especial de junho de 2020:
Estes tempos terríveis
De horror de pandemia
De luta contra a morte
De dor, de agonia
Aqueles que podem leiam
Jornalistas & Companhia
De horror de pandemia
De luta contra a morte
De dor, de agonia
Aqueles que podem leiam
Jornalistas & Companhia
No fecho do dossiê, o
jornalista que dirige o Portal ainda nos reservaria uma surpresa lúdica.
(Salve: o gesto lúdico da arte é um ato emancipatório no caos da História.)
Eduardo Ribeiro responde à homenagem de Assis a ele e ao editor executivo
Wilson Baroncelli no canto do cordel:
Assis é
amigo querido
Da Paraíba um talento
Pra São Paulo se mudou
Buscando o seu sustento
Aqui construiu a vida
Com garra de grande rebento
Da Paraíba um talento
Pra São Paulo se mudou
Buscando o seu sustento
Aqui construiu a vida
Com garra de grande rebento
Baron é
pra ele Barão
Edu sou eu com orgulho
Brincar de cordel com Assis
É música, não um barulho
Um lindo salto no céu
No mar um doce mergulho
Edu sou eu com orgulho
Brincar de cordel com Assis
É música, não um barulho
Um lindo salto no céu
No mar um doce mergulho
publicado com a autorização expressa da Prof. Dra. Cremilda
Medina
original disponível em:
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